Maria, Mãe de Deus e nossa


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Uma conversa com Nossa Senhora de Nazaré

Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, Nossa Senhora de Nazaré, aqui estamos, mais uma vez, para conversar contigo e de ti aprendermos a viver com Jesus, de Jesus e para Jesus. Conduze-nos a Ele, para que recebamos seu amor e sua graça.

Muitas imagens e pinturas foram feitas para retratar-te, ó Maria. Quantos títulos foram cunhados pelos poetas e pelo povo, porque Deus te deu a graça de manifestar-te, modelo e intercessora, em muitas partes desta terra de nosso Deus. Aqui no "mundo do Círio", és chamada de Nossa Senhora de Nazaré! Deixa-nos entrar um pouco no mistério que revelas em tua imagem. Deixa-nos levá-la por nossas ruas, porque sabemos que entraste, Viva, Senhora, Irmã e Mãe, em nossos corações. Permite-nos estender as mãos e olhar para ti, como gente sedenta dos sinais que nos conduzem a Deus!

Ao olhar para tua imagem de Nazaré, nós te contemplamos, Mãe, simples e amiga. Teu rosto mostra seriedade e serenidade, delicadeza e firmeza. Por isso olhamos para ti, pois nos mostras o que sonhamos e o que desejamos testemunhar. Sim, ó Virgem de Nazaré, tu és bendita entre as mulheres, a honra de nosso povo, e em ti se encontra o que queremos ser! Obrigado por nos atraíres a ti, à tua glória, tua berlinda e tua presença amorosa.

E vemos que tu tens nos braços o Menino Jesus, em cujas mãos está o mundo. Uma criança, com o mundo nas mãos! Parece tão pequena e tão grande esta criança, capaz de carregar o peso de tudo o que o mundo é! Tu tiveste com o Menino Jesus tamanha intimidade, que participaste de seus sentimentos e o acompanhaste, quando crescia em idade, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens. Com Ele caminhaste pelas estradas do mundo, tu o levaste pelos caminhos do Egito, com Ele voltaste a Nazaré, dali a Jerusalém, Caná, Galileia das Nações, ruas e Cenáculo, sempre estiveste com Ele e para Ele viveste, Mãe e Discípula. Dá-nos entrar contigo no mistério do mundo! Ajuda-nos a anunciar a todos a salvação que Ele nos trouxe.
Tudo foi feito por Deus em Jesus Cristo, e sem Ele nada se fez. Deus fez todas as coisas para um destino de felicidade, tanto que olhou para a sua Obra e ficou muito feliz. Olhamos contigo para o bem que existe na Obra realizada por Deus. Desejamos descobrir sempre as entranhas de bondade presentes em toda a sua Obra. Contigo queremos passear pelo mundo, sonhando com o Jardim que Deus criou!

Ao completar sua Obra, o Pai do Céu criou o homem e a mulher. Que graça imensa saber que estas criaturas foram feitas à imagem e semelhança de Deus, preparadas para responder com amor ao amor infinito! O mundo é cheio de gente, mais ainda, de filhos e filhas de Deus. Ajuda-nos, Maria Mãe, esposa, irmã, senhora, a olhar para todas as pessoas com grande amor. Tira de nosso coração os preconceitos, aproxima-nos das pessoas, especialmente as mais difíceis. Tu que és Mãe de Misericórdia, alcança-nos a graça, que vem de teu Filho amado, de ir ao encontro dos pecadores e das pessoas mais frágeis, para amá-las como Jesus amou. E se tens livre um dos teus braços, agasalha-nos aí, no afago de teu coração e perto de Jesus.

A vida no mundo é uma verdadeira batalha! Tu sabes bem, Maria de Nazaré, o que significa trabalhar, cuidar de um filho, viver como esposa, enfrentar as dificuldades. Senhora da Esperança, nós te reconhecemos parte daquele resto escolhido, os pobres de Javé, que nunca perderam a esperança. Aqui está, na conversa contigo, a porção do mundo que mais sofre e também as pessoas que perderam o sentido de sua vida. Deixa-nos entrar em tua casa, levando pelas mãos estas pessoas. Tu que estiveste de pé aos pés da Cruz, dá um jeito para que entrem pela porta da graça e da salvação, Consoladora dos Aflitos, cuida de todos os que sofrem. Porta do Céu, abre a porta para todos serem acolhidos e amados. Auxílio dos cristãos, pede a Jesus que se fortaleçam os corações cansados e fatigados, que se elevem as mãos vacilantes e a confiança seja restaurada.

Mas o mundo é também para ser vencido, pois nele existe o mistério da iniquidade, a triste realidade do pecado e suas consequências. Não tememos, porque sabemos que teu Filho Jesus já o venceu. Entretanto, precisamos ser corajosos e radicais, não nos acomodando com o mal existente, corajosos para mostrá-lo e buscar soluções. Nós te pedimos, Virgem de Nazaré, sejamos firmes e decididos. Que nunca façamos pactos com a maldade e o egoísmo. Dá-nos os valores do Céu para espalharmos na terra. Como estamos no mundo, "mas não desejamos ser do mundo", nós te dizemos confiantes.

A ti recorremos, Maria de Nazaré! Rainha da Paz, vem em auxílio dos povos que estão em guerra e entra, com teu amor materno, nas disputas entre povos e pessoas, para que cheguem à reconciliação! Mãe do belo amor, aproxima os inimigos! Saúde dos enfermos, visita os nossos doentes. Refúgio dos pecadores e Mãe de Misericórdia, estende teus braços aos pecadores, roga por nós, agora e na hora de nossa morte. Sede da Sabedoria, ajuda-nos a entender o sentido da vida e vem ajudar as pessoas que devem tomar decisões em nosso mundo. Espelho de Justiça, corrige os que erram na vida, dá discernimento aos que devem se recuperar de seus erros e pede a Jesus, teu Filho amado, que a justiça reine na terra. Causa de nossa alegria, ajuda-nos a manter o coração alegre e o rosto feliz, pela vida da graça em nossos corações.

Maria, Arca da Aliança, que trouxeste em teu ventre o Guarda e Pastor de Israel, aquele que tem palavras de vida eterna e é o Pão da Vida, faze de todos nós este povo unido, sinal da vida verdadeira, que vem do Pai amado, em Cristo, a quem seja dada a honra e a glória, no Espírito Santo. Amém.  (fonte: Dom Alberto Taveira Corrêa - Arcebispo de Belém - PA)

ELE veio para o que era seu…













E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade. (Jo 1, 8)
Nas quatro semanas do Advento a Igreja nos leva a meditar e preparar o coração para celebrar as duas Vindas de Jesus Cristo. As cores e símbolos da liturgia nos ajudam nisso. A Coroa do Advento com as quatro velas que vão sendo acendidas uma a cada semana nos preparam e ensinam.
A vela vermelha significa a Fé que o Menino traz ao mundo; a certeza de que Deus está conosco, armou a sua tenda entre nós; “revestido de nossa fragilidade, Ele veio uma primeira vez para realizar o seu eterno plano de amor e abrir-nos o caminho da salvação”, diz um dos Prefácios do Advento.
A vela branca a simboliza Paz; este Menino é o “Príncipe da Paz”, disse o profeta Isaias (11,1s). Quando o Seu Reino for implantado, “a justiça será como o cinto de seus rins, e a lealdade circundará seus flancos. Então o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao pé do cabrito, o touro e o leão comerão juntos, e um menino pequeno os conduzirá; a vaca e o urso se fraternizarão, suas crias repousarão juntas, e o leão comerá palha com o boi.  A criança de peito brincará junto à toca da víbora, e o menino desmamado meterá a mão na caverna da áspide. Não se fará mal nem dano em todo o meu santo monte, porque a terra estará cheia de ciência do Senhor, assim como as águas recobrem o fundo do mar.” (Is 11, 5-8).
A vela roxa (quase rosa) simboliza a alegria do Menino que chega para salvar. É a alegria mitigada pela cuidadosa vigilância do tempo da espera.
A vela verde traz a simbologia da Esperança que o Deus Menino traz a todos os homens de todos os tempos e todos os lugares. “Sem Deus não há esperança”, disse há pouco o Papa Bento XVI na encíclia “Spe Salvi (Salvos pela Esperança); e “sem esperança não há vida”, concluiu o Pontífice. É esta esperança  de uma vida feliz aqui e no Céu que o grande Menino veio anunciar com sua meiga e frágil presença na manjedoura de Belém.
A primeira vinda de Cristo mostra todo o amor de Deus por nós. Ninguém mais tem o direito de duvidar desse Amor. Ele deixou a glória do Céu, dignou-se assumir a nossa frágil humanidade, para nos levar de volta para o Céu; Ele aceitou viver a nossa vida, derramar as nossas lágrimas, comer nosso pão de cada dia… e, por amor puro a cada um de nós dar um mergulho nas sombras da morte para destruí-la.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1, 1s).
O amor de Deus não é o amor de novelas, com músicas românticas e palavras sensuais; é amor que se revela por fatos, atos, renúncia, sofrimento…  É amor que gera a vida.
São João apresenta o Menino que vai chegar: “A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam… Ele era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam”. A Luz de Cristo resplandeceu nas trevas mas essas não a compreederam; as trevas fogem da luz, tem medo dela, porque a luz revela o erro. Quem faz o mal, pratica o crime, busca a calada da noite para que a luz não o denuncie. Por isso Jesus foi logo perseguido pelo cruel tirano Herodes Magno.
Disse a Lumen gentium que “só Jesus Cristo revela o homem ao próprio homem”; Ele é “a luz que ilumina todo homem que vem a este mundo”; é por isso que o Papa João Paulo II disse em sua primeira encíclica “Redemptor Hominis” que: “ o homem que não conhece Jesus Cristo permanece para si mesmo um desconhecido, um mistério inexplicável, um enigma insondável”.
Sem Jesus Cristo o homem não sabe quem é, não sabe o que faz neste mundo, não sabe o sentido da vida, do sofrimento, da morte, da dor e das estrelas… é um coitado e um perdido como muitos filósofos ateus que se debateram em meio de suas trevas e acabaram arrastando muitos outros consigo para uma vida vazia e triste. Não foi à toa que muitos jovens suicidaram-se lendo o “Werther” de Goethe e a “Comédia Humana” de Balzac. Depois de ler “A Nova Heloisa” de Jean Jacques Rosseau uma jovem estourou os miolos em uma praça de Genebra e vários jovens se enforcaram em Moscou depois de ler “Os sete que se enforcaram” de Leonid Andreiv”. Só Jesus Cristo “é a Luz que ilumina todo homem que vem a este mundo”. Um dia Karl Wusmann, escritor francês, entre o revolver e o crucifixo, escolheu o crucifixo… e viveu. (J. Mohana, Sofrer e Amar).
“Mas a todos aqueles que o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus.”
O Natal nos traz esta certeza e esta enorme alegria: somos filhos amados de Deus; que nos fez para Ele, por amor. Ele fez para nós as estrelas, o cosmos, as pedras , os rios, as montanhas, os animais, os peixes das águas e os pássaros do Céu,  o doce fruto da terra, o perfume das flores, a harmonia das cores e o mar que murmura o Seu Nome a cantar… Obrigado Senhor!
(Fonte: Prof. Felipe Aquino)

Ave Maria

Esta é com certeza uma das orações mais populares do mundo. Os cristãos rezam a ave-maria várias vezes todos os dias. Quem não conhece a oração do terço, onde repetimos em cada mistério dez ave-marias, enquanto contemplamos os momentos mais marcantes da vida de Cristo? Aprendemos esta prece no colo da mãe. Os pais ficam satisfeitos em ver seus filhos pequenos repetindo de cor: ave, Maria, cheia de graça…
Mas qual o sentido de cada uma das palavras desta prece que atravessou os séculos? Nesta série de postagens, meditaremos sobre uma palavra da ave-maria. Em 2002 fizemos isso com a oração do pai-nosso. Depois reunimos todos os artigos em um livro chamado “O Pai Nosso, Tim-tim por Tim-tim”. Em 2003 comentamos as invocações da Ladainha do Coração de Jesus. Também já publicamos um livro com estes artigos, pela Edições Loyola.
Agora chegou a vez de comentar a ave-maria. De onde viria esta primeira palavra? Foi retirada da saudação do anjo Gabriel à Virgem Maria, naquele dia memorável em que o céu conversou com a terra na casinha de Nazaré. O diálogo está registrado logo no início do evangelho de Lucas (1,26). A primeira palavra que o anjo diz é “ave”, ou melhor, “haire”. É que Lucas escreveu seu evangelho em grego, língua muito popular na época. Haire é grego. Ave é a tradução de “haire” para o latim, outra língua utilizadas pelos povos de então. Mas o que significam estas palavras? É uma saudação como hoje poderíamos diz: Oi, alô, Hei, Salve, Tudo bem, Olá… Mas “Haire” literalmente significa “Alegra-te”. A primeira palavra do céu à menina de Nazaré é um anúncio de alegria. Algumas línguas preferiram esta tradução literal para a oração: Alegra-te Maria, o Senhor é contigo. É o caso do francês: Je vous salue Marie
É muito bonito pensar que a mensagem do céu não começa com uma repreensão, com uma lição de moral ou com uma ordem autoritária. Tudo começa com um anúncio de alegria. Esta é a grande vontade de Deus; que a humanidade viva na paz, na justiça, na fraternidade, na alegria.
Há um outro detalhe muito interessante. Há pouco tempo estive em Portugal e fui convidado a rezar um mistério do terço na capelinha das aparições em Fátima. Rezeri como rezam todos os brasileiros: Ave Maria…, com o acento forte no a de ave. Todos me olharam com um ar estranho. Depois alguém me questionou|: você reza ave ou ave, com o acento no “e”. Só então fiquei sabendo que em Portugal se reza ave Maria. Com isso se evidencia a relação entre Eva e Ave. Ou seja, o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria (Santo Irineu, séc. II). Rezemos com alegria…


Avé Maria, olhando tua vida meu coração exulta de alegria. Teu sim nos mereceu o Salvador. Como não cantar: minha alma engrandece o Senhor!!! Em teu colo de mãe quero cantar com os milhões de irmãos e irmãs que foram gerados em teu ventre: ave Maria…mãe de Jesus!
 O mais curioso é que a maioria das traduções da Bíblia já corrigiram este erro. Mas continuamos rezando a ave-maria da mesma maneira. A esta altura questionei o Pe. Darci dizendo que poderíamos continuar rezando assim e educar o povo no verdadeiro significado da frase, já que é difícil mudar um costume tão enraizado no meio do povo. Ele me respondeu: “Engano sei”. A mesma coisa já aconteceu com o pai-nosso que era “padre-nosso” e lá no final falava de dívidas e não de ofensas. A Igreja fez a mudança e todos seguiram a nova orientação.
            Não vou me atrever sugerir à CNBB que mude a letra da ave-maria, mas na oração pessoal podemos vez por outra fazer esta experiência de rezar: “Alegra-te, Maria, o Senhor está contigo…”

Cheia de graça

A segunda palavra da Oração Ave Maria é: “Cheia  de graça”. Mas, esta também não é uma tradução muito fiel para a palavra em grego utilizada por Lucas: keharitouméne. O que significa isso? Será que é preciso falar grego para poder rezar a Ave-Maria com devoção? Claro que não! Mas, existem verdades belíssimas que estão escondidas por detrás de algumas palavras que um primeiro olhar não consegue ver. Experimente ler este artigo até o final e você nunca mais rezará a Ave-Maria da mesma maneira. A palavra grega aí de cima vem de uma outra bem mais conhecida: kharis, que pode significar graça. E o que é a graça? Deus é graça. Quem tem Deus tem a sua graça! Maria foi cheia da graça de Deus desde o primeiro momento de sua existência. Por isso, a Igreja Católica professa o Dogma da Imaculada Conceição; naquela que habitava a plenitude da graça de Deus não poderia haver o pecado original. Os evangélicos preferem traduzir o keharitouméne como “agraciada”, para que ninguém imagine que o milagre acontecido no ventre de Maria pudesse ser fruto de seus méritos pessoais. Tudo foi fruto da graça de Deus. Mas, é claro que a graça sempre pede licença para entrar em nossa vida, como o Anjo fez com Maria em Nazaré; para que o milagre pudesse acontecer a Virgem teve que dizer o seu sim. Esta adesão de fé à graça é necessária para tudo em nossa vida. É como diz o velho ditado: Deus ajuda quem madruga. Maria aprendeu a lição. E, nas Bodas de Caná deu o conselho aos servos: “Façam tudo o que o meu filho vos disser”. E a ordem do Filho foi que enchessem as talhas de água. Ordem absurda! O que faltava era vinho. Por que encher talhas de água? Eles seguiram o conselho de Maria e a ordem de Jesus. Mais uma vez o milagre aconteceu. A água foi transformada em vinho. Água é o nosso esforço, nossa obediência… É importante, mas é apenas água. O vinho é o resultado do esforço humano fecundado pela Graça  de Deus. Este sim resolve nossos problemas. Sozinhos não somos nada. Mas se apresentarmos talhas vazias, a Graça não terá o que transformar. Por isso a graça de Deus supõe a natureza humana.
Que alegria, nossa mãe foi cheia da graça… foi agraciada. Nela o sim de Deus e o sim da humanidade se encontraram e o céu começou na terra. Jesus nasceu!

O Senhor é convosco

Dei uma carona para o Pe. Darci Dutra, velho conhecido, amigo e confrade de congregação, estudioso da Bíblia que teve oportunidade de fazer uma especialização na Escola Bíblica de Jerusalém. Lecionou durante quase 30 anos nos cursos de teologia bíblica. Quando lhe disse que deveria escrever um artigo sobre esta frase da ave-maria: “O Senhor esteja convosco”, ele me surpreendeu dizendo: “sempre achei que a Igreja deveria modificar a tradução desta frase”. Confesso que eu nunca havia pensado nisso. Parei um momento, refleti, rezei em voz alta a ave-maria. Não vi nada de errado. Quantos terços eu já havia rezado utilizando esta fórmula bíblica que aprendi como criança. Arrisquei perguntar que mudança poderia haver em oração tão popular? Ele respondeu que o certo seria dizer: “O Senhor está convosco”. Sabe que eu nunca tinha pensado nisso? Uma luz brilhou em meus olhos e em minha mente. Mas é claro. Este é o grande refrão da Bíblia. É a mais marcante fórmula da Aliança. Não foi isso que Deus disse para Moisés no episódio da Sarça ardente quando este lhe perguntou o seu nome. Deus respondeu: “Eu sou aquele que estou” (Ex 3,12-14). Esta é a certeza que anima o profeta: “O Senhor está comigo”. Se quiser verificar como esta frase aparece na Bíblia com insistência procures os textos: Ag 2,4-5; Gn 21, 22; 26,3; 24,28; 31,3; Ex 3,12, 18,19; Dt 20,1; 31,8-23; Js 1,5.9; 3,7; Jz 6,12; Rt 2,4. O Evangelho escrito por Mateus também tem este mesmo refrão. Logo no início Jesus é anunciado como “Emmanuel, Deus conosco” (Mt 1,23). No mesmo livro, no último capítulo Jesus faz uma promessa confortadora antes de voltar para o Pai: “Estarei convosco todos os dias, até a consumação dos tempos” (Mt 28,20).
            Diante de todas estas evidências bíblicas de que nosso Deus é um Deus presente, é um Deus Conosco, entendemos que a alegria e a graça anunciadas pelo anjo a Maria tem uma causa: “Deus está contigo”. Por isso ela é cheia de graça. Por isso ela pode ser chamada de “Arca da Aliança”. Nela o Espírito Santo realiza a presença de Deus na história. Em latim rezamos Dominus tecum. Significa exatamente o Senhor está contigo. Em grego rezamos kirios meta su. É a mesma coisa. Em francês temos o mesmo problema “Le Seigneur est avec vous”. Acontece que nesta língua o verbo ser e estar quase se confundem. Dizer que “o Senhor é aqui” é quase a mesma coisa que dizer que ele “está aqui”. Mas em português o uso do verbo estar é muito claro e distinto. Quando rezamos que “O Senhor é contigo” quase não conseguimos lembrar que estamos fazendo uma profissão de fé na presença de Deus na História por meio do seu espírito que agindo em Maria tornou possível a encarnação do Verbo e o nascimento do Salvador, Jesus.
            

Bendita sois vós

A cena é muito conhecida. Maria, já grávida de Jesus, resolve visitar a sua prima Isabel. Os 120 quilômetros foram feitos em clima de solidariedade com a sua parente que já estava grávida de seis meses e poderia precisar de ajuda na hora do parto. Naquele tempo não havia nem telefone, nem correio nem internet. Isabel certamente não tinha a mínima idéia que receberia a visita de Maria. Qual não foi sua surpresa quando viu a prima subindo já cansada aquele morro em direção à sua casa. No abraço os dois ventres se encontram e pela primeira vez Jesus encontra com seu primo João Batista. O menino se mexe de alegria no ventre de Isabel e esta fica cheia do Espírito Santo e começa a louvar a Deus dizendo: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,42). Bendita significaabençoada”. A presença de Maria é sinal da bênção de Deus para Isabel. Lembre que bênção não é nada mais do que a Palavra de Bem que Deus pronuncia em nosso favor. Podemos bendizer a Deus. Ou seja: Louvar! Quando louvamos a Deus na verdade elevamos uma prece de bênção que sobe aos céus. Mas Deus também pode nos bendizer, ou seja, dizer o bem. Cada minuto de nossa vida é um sinal da bênção de Deus. É motivo de louvor. Mas há momentos em que a bênção de Deus transborda de maneira mais intensa e evidente em nossa vida. Foi isso que aconteceu naquele dia na cidade de Ain Karin. Isabel já não era mais tão jovem. Zacarias, seu esposo estava com sérias dificuldades para enxergar. As coisas estavam complicadas na casa de Isabel. A chegada de Maria foi um sinal evidente da bênção de Deus para Isabel. Apenas a sua presença já seria motivo de louvor. Mas Maria não foi sozinha. Em seu ventre ela levava o Rei dos reis, Senhor dos senhores. Ela era naquele momento o mais importante templo da humanidade. Em seu ventre o verbo havia se tornado gente. Maria era um sacrário vivo. Portanto a bênção maior não era a disponibilidade humana de Maria, mas a presença divina que trazia em seu ventre.

Certamente a visita continuou como muita conversa e alegria. Mas a bíblia registrou pelo menos uma profecia de Isabel: “Bendita aquela que acreditou: o que foi dito da parte de Deus se cumprirá” (Lc 1,45) Aqui está a porta da bênção: acreditar! Maria acreditou, teve fé, por isso deu o passo e disse sim! Mas sua fé não apenas retórica. É uma fé operante em favor do irmão. Por isso ela sai com pressa para ajudar a prima. Interessante se agora você tomar a sua bíblia e ler o magnificat que Maria canta para sua prima. É uma coleção de salmos e pequenos versos bíblicos que mostram a atitude correta de quem é chamado de bentido. Devemos apontar para o verdadeiro autor: “O Senhor fez em mim maravilhas… sim, doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada” (Lc 1,46.48b). Sempre fico pensando nesta atitude humilde de nossa mãe de reconhecer os favores, as bênção de Deus.  Penso também que alguns cristãos que tem bloqueios e resistências para elogiar Maria se excluem da profecia: todas as gerações me chamarão de bendita. Está no Evangelho! Portanto, quem é verdadeiramente evangélico e crente deverá rezar: Bendita sois vós entre as mulheres!

Entre as mulheres

Continuamos o nosso desafio de comentar cada frase, cada palavra da oração da ave-maria. Já vimos que começa com a saudação do anjo Gabriel: “Alegra-te, cheia de graça, porque o Senhor está contigo”. E continua com a explosão de alegria de Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,42). O que poderia significar este “entre as mulheres”?
            Meu amigo e confrade de congregação, Pe. Zezinho, já compôs centenas de músicas inspiradas. É difícil dizer que é mais bonita ou mais profunda. Mas, com certeza, uma delas ficará definitivamente marcada na memória dos cristãos. Quem não conhece “Maria de Nazaré, Maria me cativou. Fez mais forte a minha fé e por filho me adotou”. Pois bem, há nesta canção uma frase que pode até passar despercebida no cantarolar da canção, mas é de um significado muito profundo: “Em cada mulher que a terra criou, um traço de Deus Maria deixou…”. Pode até parecer meio exagerado, mas Maria é um modelo, uma referência, um ícone do humano e, principalmente do feminino.
            Toda a tradição cristã reconhece em Maria a “nova Eva”. Santo Irineu, já no século II costumava dizer que “o nó da desobediência de Eva foi desfeito pela obediência de Maria”. Faz algum tempo que estive em Portugal e fui convidado para presidir a oração do terço na capela das aparições, em Fátima. Ao terminar, uma senhora aproximou-se gentil e, num sorriso, disse com simplicidade: - “Senhor padre, percebi que vocês brasileiros rezam ‘ave Maria’ e não ‘avé Maria’. Seria mais adequado colocar um acento no ‘avé’, para lembrar que Maria é o contrário de ‘Eva’”. Aquilo ficou na minha cabeça. Algum tempo depois o Papa João Paulo II lançou a carta sobre o Rosário (Rosarium Virginis Mariae) e lá estava: “A repetição da Avé Maria no Rosário sintoniza-nos com este encanto de Deus” (nº 33).

            Maria é apresentada na Bíblia como a bendita entre todas as mulheres. O evangelista São Mateus nos surpreende e deixa como que desconcertados. Seria de esperar que ele colocasse na genealogia de Maria mulheres santas e famosas como Sara, Rebeca, Lia e Raquel, esposas dos patriarcas. Ao invés disso o texto de Mateus 1,1-16 cita entre os ascendentes de Jesus quatro pecadoras: Tamar, Raab, Rute e Betsabé. Tamar não tinha filhos e por isso fingiu-se de prostituta para seduzir seu sogro, Judá (Gn 38); Raab é uma prostituta famosa em Jericó (Js 2); Rute é pagã e moabita (Rt 4,17); e Betsabé é a conhecida esposa de Urias com  a qual aconteceu o pecado de Davi que gerou Salomão. Como podemos observar, é nesta história de pecado que Maria aparece para colaborar com seu “sim” na salvação da humanidade. Por isso podemos dizer que ela é “bendita entre as mulheres”. Se trazemos em nossa carne a marca do pecado das origens; trazemos a memória de Adão e Eva; também podemos dizer que ficamos marcados pelo sim de Maria; trazemos a memória da obediência de Jesus que nos salvou. 

Bendito é o fruto do vosso ventre


Nosso pensamento volta 2.000 anos no tempo. Quase podemos ver aquela pequena cidade de Ain-Karin, distante 15 km de Jerusalém e cerca de 100 Km de Nazaré. Nas encostas da montanha ficava a casa de um casal em festa: Isabel e Zacarias que esperavam seu primeiro filho, João Batista. Isabel era prima de Maria e já tinha uma certa idade. Precisava de ajuda pois se aproximavam os dias em que teria que dar à luz. Maria num gesto bonito de solidariedade sai de Nazaré e faz a longa caminhada para servir Isabel. No ventre de Maria já estava o menino Jesus. Que cena bonita o encontro das duas primas. É o primeiro abraço de Jesus com seu precursor, João Batista. O menino estremece de alegria no ventre de Isabel e ela fica cheia do Espírito Santo e começa a rezar, louvar, dar glórias a Deus. Maria ouve sorridente, mas em silêncio. Entre tantas preces Isabel diz em alta voz: “Bendita é tu entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre!” A Igreja preservou a memória destas palavras na ave-maria. Todos os dias rezamos o mesmo louvor. Seria interessante voltar nosso pensamento para o abraço cheio de ternura com que a frase foi proclamada. Maria também nos visita com sua prece, sua intercessão. Precisamos estar cheios do Espírito Santo para rezar esta prece com sinceridade de coração.
            Um pouco mais adiante Maria rompe o silêncio e faz sua prece em canção. O evangelista São Lucas tentou recompor este canto juntando uma série de trechos bíblicos que conhecemos como Magnificat (Lc 1, 46-55). Foi uma tarde de louvor. Em sua oração Maria profetiza: “Sim, doravante todas as gerações me chamarão de bendita!” Nós fazemos parte desta geração que chama Maria de bendito. Fazemos isso toda vez em que rezamos a ave-maria. É certo que alguns cristãos preferem se excluir desta geração profetizada por Maria. Desta maneira se excluem desta profecia bíblica. Excluem tudo aquilo que se refere a Maria. A isto chamamos de minimalismo mariano. É um erro que devemos evitar.

            Mas é importante dizer também que a devoção mariana não é um fim em si mesma. A própria ave-maria não estaciona no louvor à Mãe de Deus. Aponta um pouco mais adiante para Jesus! Maria é o sacrário onde habita o Senhor. Existem cristãos que estão de tal forma apegados a uma devoção mariana exagerada que chegam a colocar Maria no lugar do próprio Deus. A isto chamamos de maximalismo mariano. É um erro condenado pela Igreja Católica. Quando recebemos o abraço de Maria sempre ficamos cheios do Espírito Santo e sentimos a presença de Jesus. Isabel é um bom exemplo de como deve ser a corrreta devoção mariana: simples, sábia, serena, saudável!

Jesus


O nome de Jesus aparece bem no meio da ave-maria. O papa João Paulo II chamou atenção sobre este fato em sua recente carta sobre o Rosário: “O baricentro da Avé Maria, uma espécie de charneira entre a primeira parte e a segunda, é o nome de Jesus. Às vezes, na recitação precipitada, perde-se tal baricentro e, com ele, também a ligação ao mistério de Jesus que se está a contemplar. Ora, é precisamente pela acentuação dada ao nome de Jesus e ao seu mistério que se caracteriza a recitação expressiva e frutuosa do Rosário. Já Paulo VI recordou na Exortação apostólica Marialis cultus (nº 46) o costume, existente nalgumas regiões, de dar realce ao nome de Cristo acrescentando-lhe uma cláusula evocativa do mistério que se está a meditar. É um louvável costume, sobretudo na recitação pública. Exprime de forma intensa a fé cristológica, aplicada aos diversos momentos da vida do Redentor. É profissão de fé e, ao mesmo tempo, um auxílio para permanecer em meditação, permitindo dar vida à função assimiladora, contida na repetição da Avé Maria, relativamente ao mistério de Cristo. Repetir o nome de Jesus – o único nome do qual se pode esperar a salvação (cf. Act 4, 12) – enlaçado com o da Mãe Santíssima, e de certo modo deixando que seja Ela própria a sugerir-no-lo, constitui um caminho de assimilação que quer fazer-nos penetrar cada vez mais profundamente na vida de Cristo (Rosarium Virginis Mariae, nº 33).
            Fizemos questão de citar este longo trecho por ser uma observação do Santo Padre que certamente será uma novidade para você. Desde que li estas palavras comecei a mudar o meu jeito de rezar a ave-maria, para ressaltar o nome de Jesus e concertar minha atenção na contemplação do mistério, já que Maria sempre aponta para Jesus. Como seria na prática? Rezo normalmente até “e bendito é o fruto do vosso ventre…” e então respiro antes de pronunciar este nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e nos abismos (Fil 2,9-10) e toda língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor (Fil 2,11). Realmente neste nome há poder. Não devemos pronunciá-lo de qualquer maneira. Após dizer “Jesus”, acrescento a memória do mistério que estou contemplando. Por exemplo, se for o primeiro Mistério da Luz, rezo assim: “Jesus, batizado no Jordão”, e vou repetindo isso em cada ave-maria, durante todo o terço.

            Este nome escolhido pelo próprio Deus (cf. Lc 1,31; Mt 1,21) em hebraico seria Yhôschuah, ou Yeschuah, em sua forma simplificada. Ambas têm o mesmo significado: Deus Salvador. Ao repetir o nome de Jesus pedimos que ele realize em nós o seu significado: a nossa salvação!

Santa Maria


Parece natural chamar Maria de santa. Mas será que entendemos exatamente o que isso significa? Você sabe o que é ser “santo”? Banalizamos esta expressão com a multiplicação de imagens de “santos”. Acabamos achando que a santidade é o privilégio de algumas pessoas que recebem a honra dos altares. Maria seria a primeira de todas as santas. Ser santo é mais do que isso. Em latim temos a palavra sanctus que vem do particípio passivo do verbo sancire: estar separado, ser distinto. O Templo de Jerusalém tinha o Santo dos Santos, um lugar separado onde se oferecia o incenso a Deus. Santo, neste sentido, é ser maior que o mundo, ultrapassar a história, transcender o tempo e o espaço, ser infinito, eterno, imortal! Deus é Santo. É o Totalmente Outro. Só Deus é santo. Lembre do conselho que Moisés ouviu na sarça ardente: “tira as sandálias dos teus pés, porque este lugar é santo” (Ex 3,5).
            Mas então como podemos dizer que Maria é santa? Ela não tinha todas estas qualidades de Deus! Esta é a parte bonita da história. Deus partilha conosco a sua santidade. O Espírito de Deus nos santifica. Ele nos configura a Jesus. Faz de nós imagem e semelhança do próprio Deus (Gn 1,26). Somos cristiformizados. Maria foi feita “cheia de graça” porque o Espírito a santificou com sua presença: “O Espírito virá sobre ti e te cobrirá com sua sombra; e por isso aquele que vai nascer será santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). O mesmo acontece com cada um de nós desde o dia do batismo, quando o Espírito nos cobriu com sua sombra. Começou naquele dia a história da nossa santificação. Cada dia podemos dar um passo e responder a esta graça ficando mais parecidos com Jesus. É claro que podemos também ficar parados e simplesmente não responder. Os santos são aqueles que escreveram esta história com sangue, suor e lágrimas. Escreveram a santidade com gestos concretos em favor dos irmãos; com preces e muita penitência. Paulo viveu este mistério maravilhoso. É ele quem diz: bendito seja Deus (…) que nos escolheu antes da fundação do mundo para sermos santos” (Ef 1,4). Pedro foi santo. Ele disse: “Fomos eleitos segundo os desígnios de Deus Pai, pela santificação do seu Espírito” (Pd 1,2). Já no Antigo Testamento ouvimos a exortação: “Sede santos como Deus é santo” (Lv 11,4). Jesus atualizará este pedido dizendo: “Sede perfeitos como vosso Pai do céu é perfeito” (Mt 5,48).
            Sim! Maria é santa. Ela viveu intensamente esta realidade de ser imagem e semelhança do Amor. Dizem que os filhos se parecem com os pais. Tem um ditado que diz: filho de peixe, peixinho é! Se somos filhos de Deus, devemos ser imagem do Amor. Esta é a nossa identidade mais profunda e caminho de realização plena. O interessante é que Jesus devia ser parecido com Maria no rosto e Maria era a imagem de Jesus no coração. É o único caso na história em que a mãe se parecia com o filho. Isto traduz o mistério de santidade que Paulo traduziu de maneira genial: “Eu vivo, mas já não sou eu quem vivo, Cristo vive em mim” (Gal 2,20).
h � � i l � � e meus sentimentos. Tem sensibilidade com meus sofrimentos pois faz parte do mesmo corpo que eu. Ela reza por mim e por você. A poeta não errou quando fez o Brasil cantar: “Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração, da minha vida… cuida de mim!” 

Mãe de Deus


Existem quatro dogmas marianos. Os dois mais recentes são Imaculada Conceição e Assunção. Os outros dois tem suas raízes nas páginas da Bíblia e nos debates dos teólogos dos primeiros séculos da era cristã: Virgindade Perpétua e Maternidade Divina. É exatamente este último dogma que proclamamos quando rezamos: Santa Maria, mãe de Deus. Se a afirmação bíblica da virgindade de Maria tinha o propósito cultural de afirmar que Jesus Cristo é Deus  (cf. Mt 1,18-25), dizer que ela é Mãe de Deus tem unicamente a finalidade de defender que Jesus é também humano. Afirmar as duas coisas significa crer firmemente na verdadeira encarnação de Jesus, assumindo a nossa carne para nos salvar. Conforme afirmava Santo Irineu já no século 2 “somente o que foi assumido poderia ser redimido”. Estava claro que a nossa salvação depende da verdadeira encarnação do Verbo em Jesus Cristo pela ação do Espírito Santo no ventre de Maria. Não é possível separar a natureza humana e divina de Jesus. Ele não era 50% Deus e 50% homem, como alguns pareciam sugerir. Outros achavam que ele era somente Deus em uma aparência humana. Havia mesmo que dissesse que Jesus era apenas homem, messias, profeta, mas não poderia ser Deus. O que está em jogo é a famosa frase do Evangelho de João: “O verbo se fez carne e armou entre nós a sua tenda” (1,14). É no contexto destes debates para defender a nossa salvação defendendo a verdadeira encarnação que os teólogos começam a prestar mais atenção à figura de Maria como aquela que garantiria a verdadeira humanidade de Jesus. Os poetas, por sua vez, entram na conversa chamando Maria de Theotokos, ou seja, mãe de Deus. Muitos acharam o título meio exagerado. Aconteceram muitas reuniões e debates para saber se era adequado dizer que Maria era mãe de Deus. Finalmente no ano 431, no Concílio de Éfeso esta verdade foi solenemente definida. Veja o texto exato do dogma: “Se alguém não confessa que Deus é verdadeiramente o Emmanuel, e por isso a santa Virgem é mãe de Deus (pois deu à luz carnalmente ao Verbo de Deus feito carne) seja anátema”. O Concílio de Calcedônia iria afirmar de maneira ainda mais precisa alguns anos mais tarde (451): “O Filho que antes dos séculos é gerado pelo Pai segundo a divindade, nos últimos dias, do mesmo modo, por nós e por nossa salvação é gerado por Maria Virgem e mãe de Deus, segundo a humanidade”.
Fica claro que Maria não gerou Deus. Mas por obra do Espírito, em seu ventre foi gerado o nosso salvador, Jesus Cristo, que assumiu toda a nossa natureza para nos salvar. Por isso ele é 100% Deus e 100% Humano. Eu disse: ele é! Jesus no céu continua sendo “verdadeiro Homem e verdadeiro Deus, sem separação, nem confusão” (Calcedônia). Houve um momento de “encarnação” em Nazaré. Mas nunca existiu uma “desencarnação”, nem com a morte, nem com a ressurreição, nem com a ascensão. Jesus voltou para o Pai levando algo de nossa carne que herdou do corpo daquela Mulher de Nazaré.
Não tenha receio de chamar Maria de “mãe de Deus”. Reze esta prece com a convicção de que este título é mais do que um elogio à mãe de Jesus. É um garante da nossa salvação.
z isso � g l � � h � éu. Ela sente de meus sentimentos. Tem sensibilidade com meus sofrimentos pois faz parte do mesmo corpo que eu. Ela reza por mim e por você. A poeta não errou quando fez o Brasil cantar: “Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração, da minha vida… cuida de mim!” 

Rogai por nós pecadores


Vivemos em uma época em que todos estão muito sensíveis à solidariedade. Você já percebeu como esta palavrinha aparece em cartazes, propaganda dos mais diversos produtos, comerciais de televisão, nome de iniciativas governamentais etc. O papa João Paulo II chega a dizer que a “paz é fruto da solidariedade” (Sollicitudo Rei Socialis nº 39). Este será também o tema da Campanha da Fraternidade – 2005: Solidariedade e Paz.
            Mas o que é que isso tem a ver com as palavras da ave-maria que meditamos este mês? É que a intercessão é uma forma maravilhosa de solidariedade espiritual. O “fato” é que todos estamos mais próximos do que pensamos. Estamos no mesmo barco. Todos comemos o fruto da mesma terra, respiramos o mesmo ar. De certa forma somos parte do mesmo corpo que é o universo. Precisamos reconhecer esta realidade e ser um pouco mais “corporativos”. Fiquei indignado quando vi o carro da frente jogar aqueles papéis pelo vidro sujando as ruas e poluindo o mundo com a mais completa falta de sensibilidade ecológica. Se é verdade tudo isso, então minhas lágrimas choram em mais alguém, os gritos dos pobles da Sibéria de alguma forma podem ser ouvidos na Nova Guiné, os sofrimentos das mulheres Tailandezas machucam as  árabes e a indiferença ao menores de rua de São Paulo influenciam na tristeza daquele jovem de New York. Parece poesia, mas não é. Temos no credo até um dogma que fundamenta esta solidariedade universal: creio na comunhão dos santos. É mais radiucal ainda. Acreditamos que até aqueles que já nasceram definitivamente em Deus e estão na Igreja triunfante, permanecem de alguma forma espiritual unidos a nós da Igreja militante. Eles e nós temos algum elo com a Igreja padecente que se purifica para a entrada no Reino definitivo. E que elo seria esse? É que todos somos batizados e pertencemos ao mesmo Corpo Místico de Cristo. Nele temos perfeita comunhão. Nele vivemos a perfeita solidariedade. O apóstolo Paulo já dizia estas coisas com palavras tocantes como: “Vivendo segundo a verdade, no amor, cresceremos sob todos os aspectos em relação à Cristo, que é a cabeça. É dele que o corpo todo recebe coesão e harmonia, mediante toda sorte de articulações e, assim, realiza o seu crescimento, construindo-se no amor, graças a atuação devida de cada membro” (Efésios 4, 16).

            Maria também é um membro deste corpo que vibra, torce e reza por cada um de nós. Fui para o seminário muito cedo. Há 28 anos faço a experiência de ser um filho distante. Mas nunca senti esta distância como uma separação total. Conversamos. Trocamos cartas, e-mails e uma visita quando aparece uma oportunidade. Maria da Glória faz isso na terra. mas existe uma outra maria que faz isso na glória do céu. Ela sente de meus sentimentos. Tem sensibilidade com meus sofrimentos pois faz parte do mesmo corpo que eu. Ela reza por mim e por você. A poeta não errou quando fez o Brasil cantar: “Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração, da minha vida… cuida de mim!” 

Agora e na hora da nossa morte


Eu era muito jovem quando fui ao enterro de um ente querido. Quando estava para fechar a sepultura o padre olhos para nós e disse com convicção:
            - “Agora, irmãos, vamos rezar uma ave-maria pelo primeiro de nós que vier a falecer”.
            Todos se olharam pelo canto do olho e rezaram com voz tímida e um certo contrangimento. Ninguém parecia querer aquela prece para si. Outro dia um pregador perguntou “à queima roupa”  no meio de uma palestra:
            - “Quem quer ir para o céu…?”.
            Todos levantaram o braço rapidamente. Mas ele completou:
            - “Hoje!!!”
            Não ficou sequer um de braço erguido. Gostamos da idéia de ir para o céu. Mas bem que poderia ser daqui a uns 120 anos. A terra tem mil defeitos, mas diante da morte, até que é um lugar bom pra se viver. Isto não é falta de fé. É a lei da gravidade que nos prende a este chão e nos faz gostar da vida. Não é normal gostar de sofrer e desejar morrer. Aliás, quem sente desejo de morrer precisa procurar um médico, urgente.
            Só temos duas certezas absolutas na vida: estamos vivos e um dia vamos morrer. Mas ninguém sabe quando nem como. Esta certeza incerta nos incomoda e faz pensar. Melhor do que pensar demais e perder o sono é entregar esta realidade a Deus pelas mãos de maria. Por isso terminamos esta prece dizendo: “agora e na hora de nossa morte”. A mãe está conosco a todo momento, especialmente os mais difíceis.
            Esta frase é também uma reafirmação da esperança que não decepciona. Na salve-rainha rezamos: vita, ducedo et spes nostra, salve. Significa: vida, doçura e esperança nossa, salve. Aquela que esperou Jesus nove meses nos ensina a viver a vida como um grande “advento”. A morte não é mais do que o nosso “natal” definitivo. Morrer é nascer para sempre. Quando a gente nasce, começa a morrer. A vida é morrer todo dia um pouco. Quando morremos pelo irmão, aprendemos que isto é amar. Foi isso que Jesus fez e ensinou. Quem aceita morrer viverá. Quem se apegar a vida… morrerá por antecipação. Por isso o amor é vida. O salário do pecado é a morte. Quando nascemos, todos fazem festa e o recém nascido chora. Quando morremos as pessoas choram. Mas o “recém-nascido” faz festa.

            Maria entende muito bem da arte de consolar os que estão morrendo. esteve silenciosamente ao pé da cruz de seu filho. Nem uma palavra. Apenas olhares. Quantos que comeram o pão multiplicado, ouviram os belos sermões, viram a água transformada em vinho, paralíticos curados, cegos, pecadores… tantos. Apenas João e algumas marias ao pé da cruz. Mas para Jesus não importava tanta solidão. A mãe estava lá. Colo de mãe é bom a qualquer hora e em qualquer idade. Rezar a ave-maria é pedir colo para a Mãe de Deus, agora e na hora da nossa morte!

Amém!!!



Ao longo de todo este ano meditamos cada frase da ave-maria. Chegamos ao final com esta palavrinha que é muito repetida mas nem sempre bem entendida: AMEM. Na verdade ela é muito rica de significados. Sua origem é o verbo hebraico amén, que significa amparar, suportar, confiar, ser verdadeiro, o que permanece firme, verídico, seguro, eterno. Aparece muitas vezes no Antigo Testamento, como por exemplo em 1 Reis 1,36: “Amém! Seja essa a declaração do Senhor Deus do meu senhor, o rei!”. Como podemos ver este é o significado mais conhecido do “amém” como confirmação de um compromisso assumido. O mesmo aparece em Jeremias 11,5: “E eu respondi: Amém, Senhor”. Um outro exemplo muito interessante encontra-se em Deuteronômio 27,15-26. São doze versículos  em que ao final o povo sempre exclama: Amém!  Um sentido um pouco diferente encontramos na oração de Davi que está em 1 Crônicas 16,36. Aqui o significado é mais expressão de um desejo ou esperança em que Deus irá realizar o que estamos pedindo. No Novo Testamento a palavra “amém” aparece muitas vezes com significado semelhante aos que encontramos no Antigo Testamento. Mas em Apocalipse 3,14 aparece uma novidade: Amém é usada como um nome próprio atribuído a Cristo. “Assim fala o Amém, a testemunha fiel e verdadeira [...]”. Pode ser uma alusão ao texto de Isaías 65,16 em que existe a expressão “Deus do Amém”, no sentido de Deus da Verdade. Assim, chamar Jesus de Amém é afirmar que ele é o verdadeiro Deus. Podemos acreditar em suas promessas, em suas palavras. Ele é a testemunha fiel e verdadeira de Deus. Jesus utilizava a palavra Amém no começo de afirmações importantes. A Bíblia traduz por: “em verdade em verdade vos digo…” (João 1,51; 3,3). Aparece 25 vezes no Evangelho de João, 30 vezes no Evangelho de Mateus, 13 vezes em Marcos, e 6 em Lucas. Nos outros livros do Novo Testamento a palavra “Amém” aparece 70 vezes. Portanto, toda vez que repetimos esta palavra estamos reafirmando nosso compromisso, nossa aliança com Deus. Repetimos o “amém” do próprio Cristo. Nele nos tornamos “amém”. Isto significa tornar-se seu seguidor, de Nazaré até a cruz; viver a sua mística; obedecer sua palavra; viver sua mensagem de amor aos irmãos. Repetir amém demais sem pensar no significado pode ser perigoso. É interessante quando um pregador ao final de sua mensagem pede a adesão da assembléia: Amém? E todos responde com convicção: Amém!!!Não foi exatamente isso que Maria fez ao final de sua conversa com o anjo Gabriel na Anunciação? A primeira ave-maria da história começou com uma saudação: Alegra-te, Maria, o Senhor está contigo. E terminou com a adesão da Virgem: Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a sua promessa (cf. Lucas 1, 38). Em outras palavras: o milagre de nossa salvação passou por uma palavra dita pelos lábios santos de Maria: AMÉM!

Carta Apostólica - Rosário




CARTA APOSTÓLICA
ROSARIUM VIRGINIS MARIAE
DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II AO EPISCOPADO AO CLERO E AOS FIÉIS SOBRE O ROSÁRIO


INTRODUÇÃO
1. O Rosário da Virgem Maria (Rosarium Virginis Mariae), que ao sopro do Espírito de Deus se foi formando gradualmente no segundo Milénio, é oração amada por numerosos Santos e estimulada pelo Magistério. Na sua simplicidade e profundidade, permanece, mesmo no terceiro Milénio recém iniciado, uma oração de grande significado e destinada a produzir frutos de santidade. Ela enquadra-se perfeitamente no caminho espiritual de um cristianismo que, passados dois mil anos, nada perdeu do seu frescor original, e sente-se impulsionado pelo Espírito de Deus a « fazer-se ao largo » (duc in altum!) para reafirmar, melhor « gritar » Cristo ao mundo como Senhor e Salvador, como « caminho, verdade e vida » (Jo 14, 6), como « o fim da história humana, o ponto para onde tendem os desejos da história e da civilização ».(1)
O Rosário, de facto, ainda que caracterizado pela sua fisionomia mariana, no seu âmago é oração cristológica. Na sobriedade dos seus elementos, concentra a profundidade de toda a mensagemevangélica,da qual é quase um compêndio.(2) Nele ecoa a oração de Maria, o seu perene Magnificat pela obra da Encarnação redentora iniciada no seu ventre virginal. Com ele, o povo cristão frequenta a escola de Maria, para deixar-se introduzir na contemplação da beleza do rosto de Cristo e na experiência da profundidade do seu amor. Mediante o Rosário, o crente alcança a graça em abundância, como se a recebesse das mesmas mãos da Mãe do Redentor. 

Os Romanos Pontífices e o Rosário

2. Muitos dos meus Predecessores atribuíram grande importância a esta oração. Merecimento particular teve, a propósito, Leão XIII que, no dia 1 de Setembro de 1883, promulgava a Encíclica Supremi apostolatus officio,(3)alto pronunciamento com o qual inaugurava numerosas outras declarações sobre esta oração, indicando-a como instrumento espiritual eficaz contra os males da sociedade. Entre os Papas mais recentes, já na época conciliar, que se distinguiram na promoção do Rosário, desejo recordar o Beato João XXIII(4)e sobretudo Paulo VI que, na Exortação apostólica Marialis cultus, destacou, em harmonia com a inspiração do Concílio Vaticano II, o carácter evangélico do Rosário e a sua orientação cristológica.
Eu mesmo não descurei ocasião para exortar à frequente recitação do Rosário. Desde a minha juventude, esta oração teve um lugar importante na minha vida espiritual. Trouxe-mo à memória a minha recente viagem à Polónia, sobretudo a visita ao Santuário de Kalwaria. O Rosário acompanhou-me nos momentos de alegria e nas provações. A ele confiei tantas preocupações; nele encontrei sempre conforto. Vinte e quatro anos atrás, no dia 29 de Outubro de 1978, apenas duas semanas depois da minha eleição para a Sé de Pedro, quase numa confidência, assim me exprimia: « O Rosário é a minha oração predilecta. Oração maravilhosa! Maravilhosa na simplicidade e na profundidade. [...] Pode dizer-se que o Rosário é, em certo modo, um comentário-prece do último capítulo da Constituição Lumen gentium do Vaticano II, capítulo que trata da admirável presença da Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja. De facto, sobre o fundo das palavras da `Avé Maria` passam diante dos olhos da alma os principais episódios da vida de Jesus Cristo. Eles dispõem-se no conjunto dos mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos, e põem-nos em comunhão viva com Jesus - poderíamos dizer- através do Coração de Sua Mãe. Ao mesmo tempo o nosso coração pode incluir nestas dezenas do Rosário todos os factos que formam a vida do indivíduo, da família, da nação, da Igreja e da humanidade. Acontecimentos pessoais e do próximo, e de modo particular daqueles que nos são mais familiares e que mais estimamos. Assim a simples oração do Rosário marca o ritmo da vida humana ».(5)
Com estas palavras, meus caros Irmãos e Irmãs, inseria no ritmo quotidiano do Rosário o meu primeiro ano de Pontificado. Hoje, no início do vigésimo quinto ano de serviço como Sucessor de Pedro, desejo fazer o mesmo. Quantas graças recebi nestes anos da Virgem Santa através do Rosário: Magnificat anima mea Dominum! Desejo elevar ao Senhor o meu agradecimento com as palavras da sua Mãe Santíssima, sob cuja protecção coloquei o meu ministério petrino: Totus tuus!

Outubro 2002 - Outubro 2003: Ano do Rosário

3. Por isso, na esteira da reflexão oferecida na Carta apostólica Novo millennio ineunte na qual convidei o Povo de Deus, após a experiência jubilar, a « partir de Cristo »,(6)senti a necessidade de desenvolver uma reflexão sobre o Rosário, uma espécie de coroação mariana da referida Carta apostólica, para exortar à contemplação do rosto de Cristo na companhia e na escola de sua Mãe Santíssima. Com efeito, recitar o Rosário nada mais é senão contemplar com Maria o rosto de Cristo. Para dar maior relevo a este convite, e tomando como ocasião a próxima efeméride dos cento e vinte anos da mencionada Encíclica de Leão XIII, desejo que esta oração seja especialmente proposta e valorizada nas várias comunidades cristãs durante o ano. Proclamo, portanto, o período que vai de Outubro deste ano até Outubro de 2003 Ano do Rosário. 
Deixo esta indicação pastoral à iniciativa das diversas comunidades eclesiais. Com ela não pretendo dificultar, mas antes integrar e consolidar os planos pastorais das Igrejas particulares. Espero que ela seja acolhida com generosidade e solicitude. O Rosário, quando descoberto no seu pleno significado, conduz ao âmago da vida cristã, oferecendo uma ordinária e fecunda oportunidade espiritual e pedagógica para a contemplação pessoal, a formação do Povo de Deus e a nova evangelização. Apraz-me reafirmá-lo, também, na recordação feliz de outro aniversário: os 40 anos do início do Concílio Ecuménico Vaticano II (11 de Outubro de 1962), a « grande graça » predisposta pelo Espírito de Deus para a Igreja do nosso tempo.(7)

Objecções ao Rosário

4. A oportunidade desta iniciativa emerge de distintas considerações. A primeira refere-se à urgência de fazer frente a uma certa crise desta oração, correndo o risco, no actual contexto histórico e teológico, de ser erradamente debilitada no seu valor e, por conseguinte, escassamente proposta às novas gerações. Pensam alguns que a centralidade da Liturgia, justamente ressaltada pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, tenha como necessária consequência uma diminuição da importância do Rosário. Na verdade, como precisou Paulo VI, esta oração não só não se opõe à Liturgia, mas serve-lhe de apoio, visto que introduz nela e dá-lhe continuidade, permitindo vivê-la com plena participação interior e recolhendo seus frutos na vida quotidiana. 
Pode haver também quem tema que o Rosário possa revelar-se pouco ecuménico pelo seu carácter marcadamente mariano. Na verdade, situa-se no mais claro horizonte de um culto à Mãe de Deus tal como o Concílio delineou: um culto orientado ao centro cristológico da fé cristã, de forma que, « honrando a Mãe, melhor se conheça, ame e glorifique o Filho ».(8)Se adequadamente compreendido, o Rosário é certamente uma ajuda, não um obstáculo, para o ecumenismo!

Caminho de contemplação

5. Porém, o motivo mais importante para propor com insistência a prática do Rosário reside no facto de este constituir um meio validíssimo para favorecer entre os crentes aquele compromisso de contemplação do mistério cristão que propus, na Carta apostólica Novo millennio ineunte, como verdadeira e própria pedagogia da santidade: « Há necessidade dum cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração ».(9)Enquanto que na cultura contemporânea, mesmo entre tantas contradições, emerge uma nova exigência de espiritualidade, solicitada inclusive pela influência de outras religiões, é extremamente urgente que as nossas comunidades cristãs se tornem « autênticas escolas de oração ».(10)
O Rosário situa-se na melhor e mais garantida tradição da contemplação cristã. Desenvolvido no Ocidente, é oração tipicamente meditativa e corresponde, de certo modo, à « oração do coração » ou « oração de Jesus » germinada no húmus do Oriente cristão.

Oração pela paz e pela família

6. A dar maior actualidade ao relançamento do Rosário temos algumas circunstâncias históricas. A primeira delas é a urgência de invocar de Deus o dom da paz. O Rosário foi, por diversas vezes, proposto pelos meus Predecessores e mesmo por mim como oração pela paz. No início de um Milénio, que começou com as cenas assustadoras do atentado de 11 de Setembro de 2001 e que regista, cada dia, em tantas partes do mundo novas situações de sangue e violência, descobrir novamente o Rosário significa mergulhar na contemplação do mistério d`Aquele que « é a nossapaz », tendo feito « de dois povos um só, destruindo o muro da inimizade que os separava » (Ef 2, 14). Portanto não se pode recitar o Rosário sem sentir-se chamado a um preciso compromisso de serviço à paz, especialmente na terra de Jesus, tão atormentada ainda, e tão querida ao coração cristão. 
Análoga urgência de empenho e de oração surge de outra realidade crítica da nossa época, a da família, célula da sociedade, cada vez mais ameaçada por forças desagregadoras a nível ideológico e prático, que fazem temer pelo futuro desta instituição fundamental e imprescindível e, consequentemente, pela sorte da sociedade inteira. O relançamento do Rosário nas famílias cristãs, no âmbito de uma pastoral mais ampla da família, propõe-se como ajuda eficaz para conter os efeitos devastantes desta crise da nossa época.

« Eis a tua mãe! » (Jo 19, 27)

7. Numerosos sinais demonstram quanto a Virgem Maria queira, também hoje, precisamente através desta oração, exercer aquele cuidado maternal ao qual o Redentor prestes a morrer confiou, na pessoa do discípulo predileto, todos os filhos da Igreja: « Mulher, eis aí o teu filho » (Jo19, 26). São conhecidas, ao longo dos séculos XIX e XX, várias ocasiões, nas quais a Mãe de Cristo fez, de algum modo, sentir a sua presença e a sua voz para exortar o Povo de Deus a esta forma de oração contemplativa. Em particular desejo lembrar, pela incisiva influência que conservam na vida dos cristãos e pelo reconhecimento recebido da Igreja, as aparições de Lourdes e de Fátima,(11)cujos respectivos Santuários são meta de numerosos peregrinos, em busca de conforto e de esperança. 

Na senda das testemunhas

8. Seria impossível citar a multidão sem conta de Santos que encontraram no Rosário um autêntico caminho de santificação. Bastará recordar S. Luís Maria Grignion de Montfort, autor de uma preciosa obra sobre o Rosário(12); e, em nossos dias, Padre Pio de Pietrelcina, que recentemente tive a alegria de canonizar. Além disso um carisma especial, como verdadeiro apóstolo do Rosário, teve o Beato Bártolo Longo. O seu caminho de santidade assenta numa inspiração ouvida no fundo do coração: « Quem difunde o Rosário, salva-se! ».(13) Baseado nisto, ele sentiu-se chamado a construir em Pompeia um templo dedicado à Virgem do Santo Rosário no cenário dos restos da antiga cidade, ainda pouco tocada pelo anúncio cristão quando foi sepultada em 79 pela erupção do Vesúvio e surgida das suas cinzas séculos depois como testemunho das luzes e sombras da civilização clássica. 
Com toda a sua obra e, de modo particular, através dos « Quinze Sábados », Bártolo Longo desenvolveu a alma cristológica e contemplativa do Rosário, encontrando particular estímulo e apoio em Leão XIII, o `Papa do Rosário`.

CAPÍTULO I
CONTEMPLAR CRISTO COM MARIA

Um rosto resplandecente como o sol

9. « Transfigurou-Se diante deles: o seu rosto resplandeceu como o sol » (Mt 17, 2). A cena evangélica da transfiguração de Cristo, na qual os três apóstolos Pedro, Tiago e João aparecem como que extasiados pela beleza do Redentor, pode ser tomada como ícone da contemplação cristã. Fixar os olhos no rosto de Cristo, reconhecer o seu mistério no caminho ordinário e doloroso da sua humanidade, até perceber o brilho divino definitivamente manifestado no Ressuscitado glorificado à direita do Pai, é a tarefa de cada discípulo de Cristo; é por conseguinte também a nossa tarefa. Contemplando este rosto, dispomo-nos a acolher o mistério da vida trinitária, para experimentar sempre de novo o amor do Pai e gozar da alegria do Espírito Santo. Realiza-se assim também para nós a palavra de S. Paulo: « Refletindo a glória do Senhor, como um espelho, somos transformados de glória em glória, nessa mesma imagem, sempre mais resplandecente, pela acção do Espírito do Senhor » (2Cor 3, 18).

Maria, modelo de contemplação

10. A contemplação de Cristo tem em Maria o seu modelo insuperável. O rosto do Filho pertence-lhe sob um título especial. Foi no seu ventre que Se plasmou, recebendo d`Ela também uma semelhança humana que evoca uma intimidade espiritual certamente ainda maior. À contemplação do rosto de Cristo, ninguém se dedicou com a mesma assiduidade de Maria. Os olhos do seu coração concentram-se de algum modo sobre Ele já na Anunciação, quando O concebe por obra do Espírito Santo; nos meses seguintes, começa a sentir sua presença e a pressagiar os contornos. Quando finalmente O dá à luz em Belém, também os seus olhos de carne podem fixar-se com ternura no rosto do Filho, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura (cf. Lc 2, 7).
Desde então o seu olhar, cheio sempre de reverente estupor, não se separará mais d`Ele. Algumas vezes será um olhar interrogativo, como no episódio da perda no templo: « Filho, porque nos fizeste isto? » (Lc 2, 48); em todo o caso será um olhar penetrante, capaz de ler no íntimo de Jesus, a ponto de perceber os seus sentimentos escondidos e adivinhar suas decisões, como em Caná (cf. Jo 2, 5); outras vezes, será um olhar doloroso, sobretudo aos pés da cruz, onde haverá ainda, de certa forma, o olhar da parturiente, pois Maria não se limitará a compartilhar a paixão e a morte do Unigénito, mas acolherá o novo filho a Ela entregue na pessoa do discípulo predileto (cf. Jo 19, 26-27); na manhã da Páscoa, será um olhar radioso pela alegria da ressurreição e, enfim, um olhar ardoroso pela efusão do Espírito no dia de Pentecostes (cf. Act 1,14).

As recordações de Maria

11. Maria vive com os olhos fixos em Cristo e guarda cada palavra sua: « Conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração » (Lc 2, 19; cf. 2, 51). As recordações de Jesus, estampadas na sua alma, acompanharam-na em cada circunstância, levando-a a percorrer novamente com o pensamento os vários momentos da sua vida junto com o Filho. Foram estas recordações que constituíram, de certo modo, o`rosário` que Ela mesma recitou constantemente nos dias da sua vida terrena.
E mesmo agora, entre os cânticos de alegria da Jerusalém celestial, os motivos da sua gratidão e do seu louvor permanecem imutáveis. São eles que inspiram o seu carinho materno pela Igreja peregrina, na qual Ela continua a desenvolver a composição da sua `narração` de evangelizadora. Maria propõe continuamente aos crentes os `mistérios` do seu Filho, desejando que sejam contemplados, para que possam irradiar toda a sua força salvífica. Quando recita o Rosário, a comunidade cristã sintoniza-se com a lembrança e com o olhar de Maria.

Rosário, oração contemplativa

12. O Rosário, precisamente a partir da experiência de Maria, é uma oração marcadamente contemplativa. Privado desta dimensão, perderia sentido, como sublinhava Paulo VI: « Sem contemplação, o Rosário é um corpo sem alma e a sua recitação corre o perigo de tornar-se uma repetição mecânica de fórmulas e de vir a achar-se em contradição com a advertência de Jesus: `Na oração não sejais palavrosos como os gentios, que imaginam que hão-de ser ouvidos graças à sua verbosidade` (Mt 6, 7). Por sua natureza, a recitação do Rosário requer um ritmo tranquilo e uma certa demora a pensar, que favoreçam, naquele que ora, a meditação dos mistérios da vida do Senhor, vistos através do Coração d`Aquela que mais de perto esteve em contacto com o mesmo Senhor, e que abram o acesso às suas insondáveis riquezas ».(14)
Precisamos de deter-nos neste profundo pensamento de Paulo VI, para dele extrair algumas dimensões do Rosário que definem melhor o seu carácter próprio de contemplação cristológica.

Recordar Cristo com Maria

13. O contemplar de Maria é, antes de mais, um recordar. Convém, no entanto, entender esta palavra no sentido bíblico da memória (zakar), que actualiza as obras realizadas por Deus na história da salvação. A Bíblia é narração de acontecimentos salvíficos, que culminam no mesmo Cristo. Estes acontecimentos não constituem somente um `ontem`; são também o `hoje` da salvação. 
Esta actualização realiza-se particularmente na Liturgia: o que Deus realizou séculos atrás não tinha a ver só com as testemunhas directas dos acontecimentos, mas alcança, pelo seu dom de graça, o homem de todos os tempos. Isto vale, de certo modo, também para qualquer outra piedosa ligação com aqueles acontecimentos: « fazer memória deles », em atitude de fé e de amor, significa abrir-se à graça que Cristo nos obteve com os seus mistérios de vida, morte e ressurreição. 
Por isso, enquanto se reafirma, com o Concílio Vaticano II, que a Liturgia, como exercício do ofício sacerdotal de Cristo e culto público, é « a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força »,(15)convém ainda lembrar que « a participação na sagrada Liturgia não esgota a vida espiritual. O cristão, chamado a rezar em comum, deve também entrar no seu quarto para rezar a sós ao Pai (cf. Mt 6, 6); mais, segundo ensina o Apóstolo, deve rezar sem cessar (cf. 1 Tes 5, 17) ».(16)O Rosário, com a sua especificidade, situa-se neste cenário diversificado da oração « incessante », e se a Liturgia, acção de Cristo e da Igreja, é acção salvífica por excelência, o Rosário, enquanto meditação sobre Cristo com Maria, é contemplação salutar. De facto, a inserção, de mistério em mistério, na vida do Redentor faz com que tudo aquilo que Ele realizou e a Liturgia actualiza, seja profundamente assimilado e modele a existência. 

Aprender Cristo de Maria

14. Cristo é o Mestre por excelência, o revelador e a revelação. Não se trata somente de aprender as coisas que Ele ensinou, mas de `aprender a Ele`. Porém, nisto, qual mestra mais experimentada do que Maria? Se do lado de Deus é o Espírito, o Mestre interior, que nos conduz à verdade plena de Cristo (cf. Jo 14, 26; 15, 26;16, 13), de entre os seres humanos, ninguém melhor do que Ela conhece Cristo, ninguém como a Mãe pode introduzir-nos no profundo conhecimento do seu mistério.
O primeiro dos `sinais` realizado por Jesus -a transformação da água em vinho nas bodas de Caná - mostra-nos precisamente Maria no papel de mestra, quando exorta os servos a cumprirem as disposições de Cristo (cf. Jo 2, 5). E podemos imaginar que Ela tenha desempenhado a mesma função com os discípulos depois da Ascensão de Jesus, quando ficou com eles à espera do Espírito Santo e os animou na primeira missão. Percorrer com Ela as cenas do Rosário é como frequentar a `escola` de Maria para ler Cristo, penetrar nos seus segredos, compreender a sua mensagem.
Uma escola, a de Maria, ainda mais eficaz, quando se pensa que Ela a dá obtendo-nos os dons do Espírito Santo com abundância e, ao mesmo tempo, propondo-nos o exemplo daquela « peregrinação da fé »,(17)na qual é mestra inigualável. Diante de cada mistério do Filho, Ela convida-nos, como na sua Anunciação, a colocar humildemente as perguntas que abrem à luz, para concluir sempre com a obediência da fé: « Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra » (Lc 1, 38). 

Configurar-se a Cristo com Maria

15. A espiritualidade cristã tem como seu carácter qualificador o empenho do discípulo em configurar-se sempre mais com o seu Mestre (cf. Rom 8, 29; Fil 3, 10.21). A efusão do Espírito no Baptismo introduz o crente como ramo na videira que é Cristo (cf. Jo 15, 5), constitui-o membro do seu Corpo místico (cf. 1 Cor 12, 12; Rom 12, 5). Mas a esta unidade inicial, deve corresponder um caminho de assimilação progressiva a Ele que oriente sempre mais o comportamento do discípulo conforme à `lógica` de Cristo: « Tende entre vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus » (Fil 2, 5). É necessário, segundo as palavras do Apóstolo, « revestir-se de Cristo » (Rom13, 14; Gal 3, 27).
No itinerário espiritual do Rosário, fundado na incessante contemplação - em companhia de Maria - do rosto de Cristo, este ideal exigente de configuração com Ele alcança-se através do trato, podemos dizer, `amistoso`. Este introduz-nos de modo natural na vida de Cristo e como que faz-nos `respirar` os seus sentimentos. A este respeito diz o Beato Bártolo Longo: « Tal como dois amigos, que se encontram constantemente, costumam configurar-se até mesmo nos hábitos, assim também nós, conversando familiarmente com Jesus e a Virgem, ao meditar os mistérios do Rosário, vivendo unidos uma mesma vida pela Comunhão, podemos vir a ser, por quanto possível à nossa pequenez, semelhantes a Eles, e aprender destes supremos modelos a vida humilde, pobre, escondida, paciente e perfeita ».(18)
Neste processo de configuração a Cristo no Rosário, confiamo-nos, de modo particular, à acção maternal da Virgem Santa. Aquela que é Mãe de Cristo, pertence Ela mesma à Igreja como seu « membro eminente e inteiramente singular »(19)sendo, ao mesmo tempo, a `Mãe da Igreja`. Como tal, `gera` continuamente filhos para o Corpo místico do Filho. Fá-lo mediante a intercessão, implorando para eles a efusão inesgotável do Espírito. Ela é o perfeito ícone da maternidade da Igreja.
O Rosário transporta-nos misticamente para junto de Maria dedicada a acompanhar o crescimento humano de Cristo na casa de Nazaré. Isto permite-lhe educar-nos e plasmar-nos, com a mesma solicitude, até que Cristo esteja formado em nós plenamente (cf. Gal 4, 19). Esta acção de Maria,totalmente fundada sobre a de Cristo e a esta radicalmente subordinada, « não impede minimamente a união imediata dos crentes com Cristo, antes a facilita ».(20)É o princípio luminoso expresso pelo Concílio Vaticano II, que provei com tanta força na minha vida, colocando-o na base do meu lema episcopal: Totus tuus.(21)Um lema, como é sabido, inspirado na doutrina de S.Luís Maria Grignion de Montfort, que assim explica o papel de Maria no processo de configuração a Cristo de cada um de nós: `Toda a nossa perfeição consiste em sermos configurados, unidos e consagrados a Jesus Cristo. Portanto, a mais perfeita de todas as devoções é incontestavelmente aquela que nos configura, une e consagra mais perfeitamente a Jesus Cristo. Ora, sendo Maria entre todas as criaturas a mais configurada a Jesus Cristo, daí se conclui que de todas as devoções, a que melhor consagra e configura uma alma a Nosso Senhor é a devoção a Maria, sua santa Mãe; e quanto mais uma alma for consagrada a Maria, tanto mais será a Jesus Cristo`.(22)Nunca como no Rosário o caminho de Cristo e o de Maria aparecem unidos tão profundamente. Maria só vive em Cristo e em função de Cristo

Suplicar a Cristo com Maria

16. Cristo convidou a dirigirmo-nos a Deus com insistência e confiança para ser escutados:« Pedi e dar-se-vos-á; procurai e encontrareis; batei e abrir-se-vos-á » (Mt 7, 7). O fundamento desta eficácia da oração é a bondade do Pai, mas também a mediação junto d\\\'Ele por parte do mesmo Cristo (cf. 1 Jo 2, 1) e a acção do Espírito Santo, que « intercede por nós » conforme os desígnios de Deus (cf. Rom 8, 26-27). De facto, nós « não sabemos o que devemos pedir em nossas orações » (Rom 8, 26) e, às vezes, não somos atendidos « porque pedimos mal » (Tg 4, 3). 
Em apoio da oração que Cristo e o Espírito fazem brotar no nosso coração, intervém Maria com a sua materna intercessão. `A oração da Igreja é como que sustentada pela oração de Maria`.(23)De facto, se Jesus, único Mediador, é o Caminho da nossa oração, Maria, pura transparência d`Ele, mostra o Caminho, e `é a partir desta singular cooperação de Maria com a acção do Espírito Santo que as Igrejas cultivaram a oração à santa Mãe de Deus, centrando-a na pessoa de Cristo manifestada nos seus mistérios`.(24)Nas bodas de Caná, o Evangelho mostra precisamente a eficácia da intercessão de Maria, que se faz porta-voz junto de Jesus das necessidades humanas: « Não têm vinho » (Jo2,3).
O Rosário é ao mesmo tempo meditação e súplica. A imploração insistente da Mãe de Deus apoia-se na confiança de que a sua materna intercessão tudo pode no coração do Filho. Ela é `omnipotente por graça`, como, com expressãoaudaz a ser bem entendida, dizia o Beato Bártolo Longo na sua Súplica à Virgem.(25)Uma certeza esta que, a partir do Evangelho, foi-se consolidando através da experiência do povo cristão. O grande poeta Dante, na linha de S. Bernardo, interpreta-a estupendamente, quando canta: `Donna, se` tanto grande e tanto vali, / che qual vuol grazia e a te não ricorre, / sua disianza vuol volar sanz`ali`.(26)No Rosário, Maria, santuário do Espírito Santo (cf. Lc1, 35), ao ser suplicada por nós, apresenta-se em nosso favor diante do Pai que a cumulou de graça e do Filho nascido das suas entranhas, pedindo connosco e por nós. 

Anunciar Cristo com Maria

17. O Rosário é também um itinerário de anúncio e aprofundamento, no qual o mistério de Cristo é continuamente oferecido aos diversos níveis da experiência cristã. O módulo é o de uma apresentação orante e contemplativa, que visa plasmar o discípulo segundo o coração de Cristo. De facto, se na recitação do Rosário todos os elementos para uma meditação eficaz forem devidamente valorizados, torna-se, especialmente nacelebração comunitária nas paróquias e nos santuários, uma significativa oportunidade catequética que os Pastores devem saber aproveitar. A Virgem do Rosário continua também deste modo a sua obra de anúncio de Cristo. A história do Rosário mostra como esta oração foi utilizada especialmente pelos Dominicanos, num momento difícil para a Igreja por causa da difusão da heresia. Hoje encontramo-nos diante de novos desafios. Porque não retomar na mão o Terço com a fé dos que nos precederam? O Rosário conserva toda a sua força e permanece um recurso não descurável na bagagem pastoral de todo o bom evangelizador. 
 


CAPÍTULO II
MISTÉRIOS DE CRISTO
MISTÉRIOS DA MÃE

O Rosário, `compêndio do Evangelho`

18. À contemplação do rosto de Cristo só podemos introduzir-nos escutando, no Espírito, a voz do Pai, porque « ninguém conhece o Filho senão o Pai » (Mt 11, 27). Nas proximidades de Cesaréia de Filipe, perante a confissão de Pedro, Jesus especificará a fonte de uma tão clara intuição da sua identidade: « Não foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas o meu Pai que está nos céus » (Mt 16, 17). É, pois, necessária a revelação do alto. Mas, para acolhê-la, é indispensável colocar-se à escuta: `Só a experiência do silêncio e da oração oferece o ambiente adequado para maturar e desenvolver-se um conhecimento mais verdadeiro, aderente e coerente daquele mistério`.(27)
O Rosário é um dos percursos tradicionais da oração cristã aplicada à contemplação do rosto de Cristo. Paulo VI assim o descreveu: « Oração evangélica, centrada sobre o mistério da Encarnação redentora, o Rosário é, por isso mesmo,uma prece de orientação profundamente cristológica. Na verdade, o seu elemento mais característico - a repetição litânica do `Alegra-te, Maria`- torna-se também ele louvor incessante a Cristo, objectivo último do anúncio do Anjo e da saudação da mãe do Baptista: `Bendito o fruto do teu ventre` (Lc 1, 42). Diremos mais ainda: a repetição da Avé Maria constitui a urdidura sobre a qual se desenrola a contemplação dos mistérios; aquele Jesus que cada Avé Maria relembra é o mesmo que a sucessão dos mistérios propõe, uma e outra vez, como Filho de Deus e da Virgem Santíssima ».(28)

Uma inserção oportuna

19. De tantos mistérios da vida de Cristo, o Rosário, tal como se consolidou na prática mais comum confirmada pela autoridade eclesial, aponta só alguns. Tal selecção foi ditada pela estruturação originária desta oração, que adoptou o número 150 como o dos Salmos.
Considero, no entanto, que, para reforçar o espessor cristológico do Rosário, seja oportuna uma inserção que, embora deixada à livre valorização de cada pessoa e das comunidades, lhes permita abraçar também os mistérios da vida pública de Cristo entre o Baptismo e a Paixão. Com efeito, é no âmbito destes mistérios que contemplamos aspectos importantes da pessoa de Cristo, comorevelador definitivo de Deus. É Ele que, declarado Filho dilecto do Pai no Baptismo do Jordão, anuncia a vinda do Reino, testemunha-a com as obras e proclama as suas exigências. É nos anos da vida pública que o mistério de Cristo se mostra de forma especial como mistério de luz: « Enquanto estou no mundo, sou a Luz do mundo » (Jo 9, 5). 
Para que o Rosário possa considerar-se mais plenamente ` compêndio do Evangelho`, é conveniente que, depois de recordar a encarnação e a vida oculta de Cristo (mistérios da alegria), e antes de se deter nos sofrimentos da paixão (mistérios da dor), e no triunfo da ressurreição (mistérios da glória), a meditação se concentre também sobre alguns momentos particularmente significativos da vida pública (mistérios da luz). Esta inserção de novos mistérios, sem prejudicar nenhum aspecto essencial do esquema tradicional desta oração, visa fazê-la viver com renovado interesse na espiritualidade cristã, como verdadeira introdução na profundidade do Coração de Cristo, abismo de alegria e de luz, de dor e de glória.

Mistérios da alegria

20. O primeiro ciclo, o dos `mistérios gozosos`, caracteriza-se de facto pela alegria que irradia do acontecimento da Encarnação. Isto é evidente desde a Anunciação, quando a saudação de Gabriel à Virgem de Nazaré se liga ao convite da alegria messiânica: « Alegra-te, Maria ». Para este anúncio se encaminha a história da salvação, e até, de certo modo, a história do mundo. De facto, se o desígnio do Pai é recapitular em Cristo todas as coisas (cf. Ef 1, 10), então todo o universo de algum modo é alcançado pelo favor divino, com o qual o Pai Se inclina sobre Maria para torná-La Mãe do seu Filho. Por sua vez, toda a humanidade está como que incluída no fiat com que Ela corresponde prontamente à vontade de Deus.
Sob o signo da exultação, aparece depois a cena do encontro com Isabel, onde a mesma voz de Maria e a presença de Cristo no seu ventre fazem « saltar de alegria » João (cf. Lc 1, 44). Inundada de alegria é a cena de Belém, onde o nascimento do Deus-Menino, o Salvador do mundo, é cantado pelos anjos e anunciado aos pastores precisamente como « uma grande alegria » (Lc 2, 10).
Os dois últimos mistérios, porém, mesmo conservando o sabor da alegria antecipam já os sinais do drama. A apresentação no templo, de facto, enquanto exprime a alegria da consagração e extasia o velho Simeão, regista também a profecia do « sinal de contradição » que o Menino será para Israel e da espada que trespassará a alma da Mãe (cf. Lc 2, 34-35). Gozoso e ao mesmo tempo dramático é também o episódio de Jesus, aos doze anos, no templo. Vemo-Lo aqui na sua divina sabedoria, enquanto escuta e interroga, e substancialmente no papel d`Aquele que `ensina`. A revelação do seu mistério de Filho totalmente dedicado às coisas do Pai é anúncio daquela radicalidade evangélica que põe inclusive em crise os laços mais caros do homem, diante das exigências absolutas do Reino. Até José e Maria, aflitos e angustiados, « não entenderam » as suas palavras (Lc 2, 50).
Por isso, meditar os mistérios gozosos significa entrar nas motivações últimas e no significado profundo da alegria cristã. Significa fixar o olhar sobre a realidade concreta do mistério da Encarnação e sobre o obscuro prenúncio do mistério do sofrimento salvífico. Maria leva-nos a aprender o segredo da alegria cristã, lembrando-nos que o cristianismo é, antes de mais, euangelion, `boa nova`, que tem o seu centro, antes, o seu mesmo conteúdo, na pessoa de Cristo, o Verbo feito carne, único Salvador do mundo.

Mistérios da luz

21. Passando da infância e da vida de Nazaré à vida pública de Jesus, a contemplação leva-nos aos mistérios que se podem chamar, por especial título, `mistérios da luz`. Na verdade, todo o mistério de Cristo é luz. Ele é a « luz do mundo » (Jo8, 12). Mas esta dimensão emerge particularmente nos anos da vida pública, quando Ele anuncia o evangelho do Reino. Querendo indicar à comunidade cristã cinco momentos significativos - mistérios luminosos - desta fase da vida de Cristo, considero que se podem justamente individuar: 1o no seu Baptismo no Jordão, 2o na sua auto-revelação nas bodas de Caná, 3o no seu anúncio do Reino de Deus com o convite à conversão, 4o na sua Transfiguração e, enfim, 5o na instituição da Eucaristia, expressão sacramental do mistério pascal.
Cada um destes mistérios é revelação do Reino divino já personificado no mesmo Jesus. Primeiramente é mistério de luz o Baptismo no Jordão. Aqui, enquanto Cristo desce à água do rio, como inocente que Se faz pecado por nós (cf. 2 Cor 5, 21), o céu abre-se e a voz do Pai proclama-O Filho dilecto (cf. Mt 3, 17 par), ao mesmo tempo que o Espírito vem sobre Ele para investi-Lo na missão que O espera. Mistério de luz é o início dos sinais em Caná (cf. Jo 2, 1-12), quando Cristo, transformando a água em vinho, abre à fé o coração dos discípulos graças à intervenção de Maria, a primeira entre os crentes. Mistério de luz é a pregação com a qual Jesus anuncia o advento do Reino de Deus e convida à conversão (cf. Mc 1, 15), perdoando os pecados de quem a Ele se dirige com humilde confiança (cf.Mc 2, 3-13; Lc 7, 47-48), início do ministério de misericórdia que Ele prosseguirá exercendo até ao fim do mundo, especialmente através do sacramento da Reconciliação confiado à sua Igreja (cf. Jo 20, 22-23). Mistério de luz por excelência é a Transfiguração que, segundo a tradição, se deu no Monte Tabor. A glória da Divindade reluz no rosto de Cristo, enquanto o Pai O acredita aos Apóstolos extasiados para que O « escutem » (cf. Lc 9, 35 par) e se disponham a viver com Ele o momento doloroso da Paixão, a fim de chegarem com Ele à glória da Ressurreição e a uma vida transfigurada pelo Espírito Santo. Mistério de luz é, enfim, a instituição da Eucaristia, na qual Cristo Se faz alimento com o seu Corpo e o seu Sangue sob os sinais do pão e do vinho, testemunhando « até ao extremo » o seu amor pela humanidade (Jo 13, 1), por cuja salvação Se oferecerá em sacrifício.
Nestes mistérios, à excepção de Caná, a presença de Maria fica em segundo plano. Os Evangelhos mencionam apenas alguma presença ocasional d`Ela no tempo da pregação de Jesus (cf.Mc 3, 31-35; Jo 2, 12) e nada dizem de uma eventual presença no Cenáculo durante a instituição da Eucaristia. Mas, a função que desempenha em Caná acompanha, de algum modo, todo o caminho de Cristo. A revelação, que no Baptismo do Jordão é oferecida directamente pelo Pai e confirmada pelo Baptista, está na sua boca em Caná, e torna-se a grande advertência materna que Ela dirige à Igreja de todos os tempos: « Fazei o que Ele vos disser » (Jo 2, 5). Advertência esta que introduz bem as palavras e os sinais de Cristo durante a vida pública, constituindo o fundo mariano de todos os `mistérios da luz`.

Mistérios da dor

22. Os Evangelhos dão grande relevo aos mistérios da dor de Cristo. A piedade cristã desde sempre, especialmente na Quaresma, através do exercício da Via Sacra, deteve-se em cada um dos momentos da Paixão, intuindo que aqui está o ápice da revelação do amor e a fonte da nossa salvação. O Rosário escolhe alguns momentos da Paixão, induzindo o orante a fixar neles o olhar do coração e a revivê-los. O itinerário meditativo abre-se com o Getsémani, onde Cristo vive um momento de particular angústia perante a vontade do Pai, contra a qual a debilidade da carne seria tentada a revoltar-se. Ali Cristo põe-Se no lugar de todas as tentações da humanidade, e diante de todos os seus pecados, para dizer ao Pai: « Não se faça a minha vontade, mas a Tua » (Lc 22, 42 e par). Este seu `sim` muda o `não` dos pais no Éden. E o quanto Lhe deverá custar esta adesão à vontade do Pai, emerge dos mistérios seguintes, nos quais, com a flagelação, a coroação de espinhos, a subida ao Calvário, a morte na cruz, Ele é lançado no maior desprezo: Ecce homo!
Neste desprezo, revela-se não somente o amor Deus, mas o mesmo sentido do homem. Ecce homo: quem quiser conhecer o homem, deve saber reconhecer o seu sentido, a sua raiz e o seu cumprimento em Cristo, Deus que Se rebaixa por amor « até à morte, e morte de cruz » (Fil 2, 8). Os mistérios da dor levam o crente a reviver a morte de Jesus pondo-se aos pés da cruz junto de Maria, para com Ela penetrar no abismo do amor de Deus pelo homem e sentir toda a sua força regeneradora.

Mistérios da glória

23. `A contemplação do rosto de Cristo não pode deter-se na imagem do crucificado. Ele é o Ressuscitado!`.(29)O Rosário sempre expressou esta certeza da fé, convidando o crente a ultrapassar as trevas da Paixão, para fixar o olhar na glória de Cristo com a Ressurreição e a Ascensão. Contemplando o Ressuscitado, o cristão descobre novamente as razões da própria fé (cf. 1 Cor 15, 14), e revive não só a alegria daqueles a quem Cristo Se manifestou - os Apóstolos, a Madalena, os discípulos de Emaús -, mas também a alegria de Maria, que deverá ter tido uma experiência não menos intensa da nova existência do Filho glorificado. A esta glória, onde com a Ascensão Cristo Se senta à direita do Pai, Ela mesma será elevada com a Assunção, chegando, por especialíssimo privilégio, a antecipar o destino reservado a todos os justos com a ressurreição da carne. Enfim, coroada de glória - como aparece no último mistério glorioso - Ela resplandece como Rainha dos Anjos e dos Santos, antecipação e ponto culminante da condição escatológica da Igreja. 
No centro deste itinerário de glória do Filho e da Mãe, o Rosário põe, no terceiro mistério glorioso, o Pentecostes, que mostra o rosto da Igreja como família reunida com Maria, fortalecida pela poderosa efusão do Espírito, pronta para a missão evangelizadora. No âmbito da realidade da Igreja, a contemplação deste, como dos outros mistérios gloriosos, deve levar os crentes a tomarem uma consciência cada vez mais viva da sua nova existência em Cristo, uma existência de que o Pentecostes constitui o grande `ícone`. Desta forma, os mistérios gloriosos alimentam nos crentes a esperança da meta escatológica, para onde caminham como membros do Povo de Deus peregrino na história. Isto não pode deixar de impelí-los a um corajoso testemunho daquela « grande alegria » que dá sentido a toda a sua vida.

Dos `mistérios` ao `Mistério`: o caminho de Maria

24. Estes ciclos meditativos propostos no Santo Rosário não são certamente exaustivos, mas apelam ao essencial, introduzindo o espírito no gosto de um conhecimento de Cristo que brota continuamente da fonte límpida do texto evangélico. Cada passagem da vida de Cristo, como é narrada pelos Evangelistas, reflecte aquele Mistério que supera todo o conhecimento (cf. Ef 3, 19). É o Mistério do Verbo feito carne, no Qual « habita corporalmente toda a plenitude da divindade » (Col 2, 9). Por isso, o Catecismo da Igreja Católica insiste tanto nos mistérios de Cristo, lembrando que « tudo na vida de Jesus é sinal do seu Mistério ».(30)O `duc in altum` da Igreja no terceiro Milénio é medido pela capacidade dos cristãos de « conhecerem o mistério de Deus, isto é Cristo, no Qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência » (Col 2, 2-3). A cada baptizado é dirigido este voto ardente da Carta aos Efésios: « Que Cristo habite pela fé nos vossos corações, de sorte que, arraigados e fundados na caridade, possais [...] compreender o amor de Cristo, que excede toda a ciência, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus » (3, 17-19).
O Rosário coloca-se ao serviço deste ideal, oferecendo o `segredo` para se abrir mais facilmente a um conhecimento profundo e empenhado de Cristo. Digamos que é o caminho de Maria. É o caminho do exemplo da Virgem de Nazaré, mulher de fé, de silêncio e de escuta. É, ao mesmo tempo, o caminho de uma devoção mariana animada pela certeza da relação indivisível que liga Cristo à sua Mãe Santíssima: os mistérios de Cristo são também, de certo modo, os mistérios da Mãe, mesmo quando não está directamente envolvida, pelo facto de Ela viver d`Ele e para Ele. Na Avé Maria, apropriando-nos das palavras do Arcanjo Gabriel e de Santa Isabel, sentimo-nos levados a procurar sempre de novo em Maria, nos seus braços e no seu coração, o « fruto bendito do seu ventre » (cf. Lc 1, 42).

Mistério de Cristo, `mistério` do homem

25. No citado testemunho de 1978 sobre o Rosário como minha oração predilecta, exprimi um conceito sobre o qual desejo retornar. Dizia então que « a simples oração do Rosário marca o ritmo da vida humana ».(31)
À luz das reflexões desenvolvidas até agora sobre os mistérios de Cristo, não é difícil aprofundar esta implicação antropológica do Rosário; uma implicação mais radical do que possa parecer à primeira vista. Quem contempla a Cristo,percorrendo as etapas da sua vida, não pode deixar de aprender d`Ele a verdade sobre o homem. É a grande afirmação do Concílio Vaticano II que, desde a Carta encíclica Redemptor hominis, tantas vezes fiz objecto do meu magistério: `Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente`.(32)O Rosário ajuda a abrir-se a esta luz. Seguindo o caminho de Cristo, no qual o caminho do homem é « recapitulado »,(33)manifestado e redimido, o crente põe-se diante da imagem do homem verdadeiro. Contemplando o seu nascimento aprende a sacralidade da vida, olhando para a casa de Nazaré aprende a verdade originária da família segundo o desígnio de Deus, escutando o Mestre nos mistérios da vida pública recebe a luz para entrar no Reino de Deus, e seguindo-O no caminho para o Calvário aprende o sentido da dor salvífica. Contemplando, enfim, a Cristo e sua Mãe na glória, vê a meta para a qual cada um de nós é chamado, se se deixa curar e transfigurar pelo Espírito Santo. Pode-se dizer, portanto, que cada mistério do Rosário, bem meditado, ilumina o mistério do homem. 
Ao mesmo tempo, torna-se natural levar a este encontro com a humanidade santa do Redentor os numerosos problemas, agruras, fadigas e projectos que definem a nossa vida. « Descarrega sobre o Senhor os teus cuidados, e Ele tesustentará » (Sal 55, 23). Meditar com o Rosário significa entregar os nossos cuidados aos corações misericordiosos de Cristo e da sua Mãe. À distância de vinte e cinco anos, ao reconsiderar as provações que não faltaram nem mesmo no exercício do ministério petrino, desejo insistir, como para convidar calorosamente a todos, a fim de que experimentem pessoalmente isto mesmo: verdadeiramente o Rosário « marca o ritmo da vida humana » para harmonizá-la com o ritmo da vida divina, na gozosa comunhão da Santíssima Trindade, destino e aspiração da nossa existência. 

CAPÍTULO III
« PARA MIM, O VIVER É CRISTO »

O Rosário, caminho de assimilação do mistério

26. A meditação dos mistérios de Cristo é proposta no Rosário com um método característico, apropriado por sua natureza para favorecer a assimilação dos mesmos. É o método baseado na repetição. Isto é visível sobretudo com a Avé Maria, repetida dez vezes em cada mistério. Considerando superficialmente uma tal repetição, pode-se ser tentado a ver o Rosário como uma prática árida e aborrecida. Chega-se, porém, a uma ideia muito diferente, quando se considera o Terço como expressão daquele amor que não se cansa de voltar à pessoa amada com efusões que, apesar de semelhantes na sua manifestação, são sempre novas pelo sentimento que as permeia. Em Cristo, Deus assumiu verdadeiramente um « coração de carne ». Não tem apenas um coração divino, rico de misericórdia e perdão, mas também um coração humano, capaz de todas as vibrações de afecto. Se houvesse necessidade dum testemunho evangélico disto mesmo, não seria difícil encontrá-lo no diálogo comovente de Cristo com Pedro depois da ressurreição: « Simão, filho de João, tu amas-Me? » Por três vezes é feita a pergunta, e três vezes recebe como resposta: « Senhor, Tu sabes que Te amo » (cf. Jo21, 15-17). Além do significado específico do texto, tão importante para a missão de Pedro, não passa despercebida a ninguém a beleza desta tríplice repetição, na qual a solicitação insistente e a respectiva resposta são expressas com termos bem conhecidos da experiência universal do amor humano. Para compreender o Rosário, é preciso entrar na dinâmica psicológica típica do amor. Uma coisa é clara! Se a repetição da Avé Maria se dirige directamente a Maria, com Ela e por Ela é para Jesus que, em última análise, vai o acto de amor. A repetição alimenta-se do desejo duma conformação cada vez mais plena Cristo, verdadeiro `programa` da vida cristã. S. Paulo enunciou este programa com palavras cheias de ardor: « Para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro » (Flp 1, 21). E ainda: « Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim » (Gal 2, 20). O Rosário ajuda-nos a crescer nesta conformação até à meta da santidade.

Um método válido...

27. Não deve maravilhar-nos o facto de a relação com Cristo se servir também do auxílio dum método. Deus comunica-Se ao homem, respeitando o modo de ser da nossa natureza e os seus ritmos vitais. Por isso a espiritualidade cristã, embora conhecendo as formas mais sublimes do silêncio místico onde todas as imagens, palavras e gestos ficam superados pela intensidade duma inefável união do homem com Deus, normalmente passa pelo envolvimento total da pessoa, na sua complexa realidade psico-física e relacional.
Isto é evidente na Liturgia. Os sacramentos e os sacramentais estão estruturados com uma série de ritos, em que se faz apelo às diversas dimensões da pessoa. E a mesma exigência transparece da oração não litúrgica. A confirmá-lo está o facto de a oração mais característica de meditação cristológica no Oriente, que se centra nas palavras « Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor, tem piedade de mim, pecador »,(34)estar tradicionalmente ligada ao ritmo da respiração: ao mesmo tempo que isso facilita a perseverança na invocação, assegura quase uma densidade física ao desejo de que Cristo se torne a respiração, a alma e o `tudo` da vida.

...que todavia pode ser melhorado

28. Recordei na Carta apostólica Novo millennio ineunte que há hoje, mesmo no Ocidente, uma renovada exigência de meditação, que se vê às vezes promovida noutras religiões com modalidades cativantes.(35)Não faltam cristãos que, por reduzido conhecimento da tradição contemplativa cristã, se deixam aliciar por tais propostas. Apesar de possuírem elementos positivos e às vezes compatíveis com a experiência cristã, todavia escondem frequentemente um fundo ideológico inaceitável. Em tais experiências, é muito comum aparecer uma metodologia que, tendo por objectivo uma alta concentração espiritual, recorre a técnicas repetitivas e simbólicas de carácter psico-físico. O Rosário coloca-se neste quadro universal da fenomenologia religiosa, mas apresenta características próprias, que correspondem às exigências típicas da especificidade cristã. 
Na realidade, trata-se simplesmente de um método para contemplar. E, como método que é, há-de ser utilizado em ordem ao seu fim, e não como fim em si mesmo. Mas, sendo fruto duma experiência secular, o próprio método não deve ser subestimado. Abona em seu favor a experiência de inumeráveis Santos. Isto, porém, não impede que seja melhorado. Tal é o objectivo da inserção, no ciclo dos mistérios, da nova série dos mysteria lucis, juntamente com algumas sugestões relativas à recitação, que proponho nesta Carta. Através delas, embora respeitando a estrutura amplamente consolidada desta oração, queria ajudar os fiéis a compreendê-la nos seus aspectos simbólicos, em sintonia com as exigências da vida quotidiana. Sem isso, o Rosário corre o risco não só de não produzir os efeitos espirituais desejados, mas até mesmo de o terço, com que habitualmente é recitado, acabar por ser visto quase como um amuleto ou objecto mágico, com uma adulteração radical do seu sentido e função.

A enunciação do mistério

29. Enunciar o mistério, com a possibilidade até de fixar contextualmente um ícone que o represente, é como abrir um cenário sobre o qual se concentra a atenção. As palavras orientam a imaginação e o espírito para aquele episódio ou momento concreto da vida de Cristo. Na espiritualidade que se foi desenvolvendo na Igreja, tanto a veneração de ícones como inúmeras devoções ricas de elementos sensíveis e mesmo o método proposto por Santo Inácio de Loiola nos Exercícios Espirituais recorrem ao elemento visível e figurativo (a chamada compositio loci), considerando-o de grande ajuda para facilitar a concentração do espírito no mistério. Aliás, é uma metodologia que corresponde à própria lógica da Encarnação: em Jesus, Deus quis tomar feições humanas. É através da sua realidade corpórea que somos levados a tomar contacto com o seu mistério divino.
É a esta exigência de concretização que dá resposta a enunciação dos vários mistérios do Rosário. Certamente, estes não substituem o Evangelho, nem fazem referência a todas as suas páginas. Por isso, o Rosário não substitui a lectio divina; pelo contrário, supõe-na e promove-a. Mas, se os mistérios considerados no Rosário, completados agora com os mysteria lucis, se limitam aos traços fundamentais da vida de Cristo, o espírito pode facilmente a partir deles estender-se ao resto do Evangelho, sobretudo quando o Rosário é recitado em momentos particulares de prolongado silêncio.

A escuta da Palavra de Deus

30. A fim de dar fundamentação bíblica e maior profundidade à meditação, é útil que a enunciação do mistério seja acompanhada pela proclamação de uma passagem bíblica alusiva, que, segundo as circunstâncias, pode ser mais ou menos longa. De facto, as outras palavras não atingem nunca a eficácia própria da palavra inspirada. Esta há-de ser escutada com a certeza de que é Palavra de Deus, pronunciada para o dia de hoje e `para mim`.
Assim acolhida, ela entra na metodologia de repetição do Rosário, sem provocar o enfado que derivaria duma simples evocação de informação já bem conhecida. Não, não se trata de trazer à memória uma informação, mas de deixar Deus `falar`. Em ocasiões solenes e comunitárias, esta palavra pode ser devidamente ilustrada com um breve comentário.

O silêncio

31. A escuta e a meditação alimentam-se de silêncio. Por isso, após a enunciação do mistério e a proclamação da Palavra, é conveniente parar, durante um côngruo período de tempo, a fixar o olhar sobre o mistério meditado, antes de começar a oração vocal. A redescoberta do valor do silêncio é um dos segredos para a prática da contemplação e da meditação. Entre as limitações duma sociedade de forte predominância tecnológica e mediática, conta-se o facto de se tornar cada vez mais difícil o silêncio. Tal como na Liturgia se recomendam momentos de silêncio, assim também na recitação do Rosário é oportuno fazer uma pausa depois da escuta da Palavra de Deus enquanto o espírito se fixa no conteúdo do relativo mistério.

O `Pai nosso`

32. Após a escuta da Palavra e a concentração no mistério, é natural que o espírito se eleve para o Pai. Em cada um dos seus mistérios, Jesus leva-nos sempre até ao Pai, para Quem Ele Se volta continuamente porque repousa no seu `seio` (cf. Jo 1,18). Quer introduzir-nos na intimidade do Pai, para dizermos com Ele: « Abbá, Pai » (Rom 8, 5; Gal 4, 6). É em relação ao Pai que Ele nos torna irmãos seus e entre nós, ao comunicar-nos o Espírito que é conjuntamente d\\\'Ele e do Pai. O `Pai nosso`, colocado quase como alicerce da meditação cristológico-mariana que se desenrola através da repetição da Avé Maria, torna a meditação do mistério, mesmo quando é feita a sós, uma experiência eclesial.

As dez `Avé Marias`

33. Este elemento é o mais encorpado do Rosário e também o que faz dele uma oração mariana por excelência. Mas à luz da própria Avé Maria, bem entendida, nota-se claramente que o carácter mariano não só não se opõe ao cristológico como até o sublinha e exalta. De facto, a primeira parte da Avé Maria, tirada das palavras dirigidas a Maria pelo Anjo Gabriel e por Santa Isabel, é contemplação adoradora do mistério que se realiza na Virgem de Nazaré. Exprimem, por assim dizer, a admiração do céu e da terra, e deixam de certo modo transparecer o encanto do próprio Deus ao contemplar a sua obra-prima -a encarnação do Filho no ventre virginal de Maria - na linha daquele olhar contente do Génesis (cf. Gen 1, 31), daquele primordial « pathos com que Deus, na aurora da criação, contemplou a obra das suas mãos ».(36)A repetição da Avé Maria no Rosário sintoniza-nos com este encanto de Deus: é júbilo, admiração, reconhecimento do maior milagre da história. É o cumprimento da profecia de Maria: « Desde agora, todas as gerações Me hão-de chamar ditosa » (Lc 1, 48).
O baricentro da Avé Maria, uma espécie de charneira entre a primeira parte e a segunda, é o nome de Jesus. Às vezes, na recitação precipitada, perde-se tal baricentro e, com ele, também a ligação ao mistério de Jesus que se está a contemplar. Ora, é precisamente pela acentuação dada ao nome de Jesus e ao seu mistério que se caracteriza a recitação expressiva e frutuosa do Rosário. Já Paulo VI recordou na Exortação apostólica Marialis cultus o costume, existente nalgumas regiões, de dar realce ao nome de Cristo acrescentando-lhe uma cláusula evocativa do mistério que se está a meditar.(37)É um louvável costume, sobretudo na recitação pública. Exprime de forma intensa a fé cristológica, aplicada aos diversos momentos da vida do Redentor. É profissão de fé e, ao mesmo tempo, um auxílio para permanecer em meditação, permitindo dar vida à função assimiladora, contida na repetição da Avé Maria, relativamente ao mistério de Cristo. Repetir o nome de Jesus - o único nome do qual se pode esperar a salvação (cf. Act 4, 12) - enlaçado com o da Mãe Santíssima, e de certo modo deixando que seja Ela própria a sugerir-no-lo, constitui um caminho de assimilação que quer fazer-nos penetrar cada vez mais profundamente na vida de Cristo. 
Desta relação muito especial de Maria com Cristo, que faz d\\\'Ela a Mãe de Deus, a Theotòkos, deriva a força da súplica com que nos dirigimos a Ela depois na segunda parte da oração, confiando à sua materna intercessão a nossa vida e a hora da nossa morte.

O `Glória`

34. A doxologia trinitária é a meta da contemplação cristã. De facto, Cristo é o caminho que nos conduz ao Pai no Espírito. Se percorrermos em profundidade este caminho, achamo-noscontinuamente na presença do mistério das três Pessoas divinas para As louvar, adorar, agradecer. É importante que o Glória, apogeu da contemplação, seja posto em grande evidência no Rosário. Na recitação pública, poder-se-ia cantar para dar a devida ênfase a esta perspectiva estrutural e qualificadora de toda a oração cristã. 
Na medida em que a meditação do mistério tiver sido - de Avé Maria em Avé Maria - atenta, profunda, animada pelo amor de Cristo e por Maria, a glorificação trinitária de cada dezena, em vez de reduzir-se a uma rápida conclusão, adquirirá o seu justo tom contemplativo, quase elevando o espírito à altura do Paraíso e fazendo-nos reviver de certo modo a experiência do Tabor, antecipação da contemplação futura: « Que bom é estarmos aqui! » (Lc 9, 33).

A jaculatória final

35. Na prática corrente do Rosário, depois da doxologia trinitária diz-se uma jaculatória, que varia segundo os costumes. Sem diminuir em nada o valor de tais invocações, parece oportuno assinalar que a contemplação dos mistérios poderá manifestar melhor toda a sua fecundidade, se se tiver o cuidado de terminar cada um dos mistérios com uma oração para obter os frutos específicos da meditação desse mistério. Deste modo, o Rosário poderá exprimir com maior eficácia a sua ligação com a vida cristã. Isto mesmo no-lo sugere uma bela oração litúrgica, que nos convida a pedir para, através da meditação dos mistérios do Rosário, chegarmos a « imitar o que contêm e alcançar o que prometem ».(38) Uma tal oração conclusiva poderá gozar, como acontece já, de uma legítima variedade na sua inspiração. Assim, o Rosário adquirirá uma fisionomia mais adaptada às diferentes tradições espirituais e às várias comunidades cristãs. Nesta perspectiva, é desejável que haja uma divulgação, com o devido discernimento pastoral, das propostas mais significativas, talvez experimentadas em centros e santuários marianos particularmente sensíveis à prática do Rosário, para que o Povo de Deus possa valer-se de toda a verdadeira riqueza espiritual, tirando dela alimento para a sua contemplação.

O terço

36. Um instrumento tradicional na recitação do Rosário é o terço. No seu uso mais superficial, reduz-se frequentemente a um simples meio para contar e registar a sucessão das Avé Marias. Mas, presta-se também a exprimir simbolismos, que podem conferir maior profundidade à contemplação. A tal respeito, a primeira coisa a notar é como o terço converge para o Crucificado, que desta forma abre e fecha o próprio itinerário da oração. Em Cristo, está centrada a vida e a oração dos crentes. Tudo parte d\\\'Ele, tudo tende para Ele, tudo por Ele, no Espírito Santo, chega ao Pai. Como instrumento de contagem que assinala o avançar da oração, o terço evoca o caminho incessante da contemplação e da perfeição cristã. O Beato Bártolo Longo via-o também como uma `cadeia` que nos prende a Deus. Cadeia sim, mas uma doce cadeia; assim se apresenta sempre a relação com um Deus que é Pai. Cadeia `filial`, que nos coloca em sintonia com Maria, a « serva do Senhor » (Lc 1, 38), e em última instância com o próprio Cristo que, apesar de ser Deus, Se fez « servo » por nosso amor (Flp 2, 7).
É bom alargar o significado simbólico do terço também à nossa relação recíproca, recordando através dele o vínculo de comunhão e fraternidade que a todos nos une em Cristo.

Começo e conclusão

37. Segundo a praxe comum, são vários os modos de introduzir o Rosário nos distintos contextos eclesiais. Em algumas regiões, costuma-se iniciar com a invocação do Salmo 69/70: « Ó Deus, vinde em nosso auxílio; Senhor, socorrei-nos e salvai-nos », para de certo modo alimentar, na pessoa orante, a humilde certeza da sua própria indigência; ao contrário, noutros lugares começa-se com a recitação do Creio em Deus Pai, querendo de certo modo colocar a profissão de fé como fundamento do caminho contemplativo que se inicia. Estes e outros modos, na medida em que dispõem melhor à contemplação, são métodos igualmente legítimos. A recitação termina com a oração pelas intenções do Papa, para estender o olhar de quem reza ao amplo horizonte das necessidades eclesiais. Foi precisamente para encorajar esta perspectiva eclesial do Rosário que a Igreja quis enriquecê-lo com indulgências sagradas para quem o recitar com as devidas disposições.
Assim vivido, o Rosário torna-se verdadeiramente um caminho espiritual, onde Maria faz de mãe, mestra e guia, e apoia o fiel com a sua poderosa intercessão. Como admirar-se de que o espírito, no final desta oração em que teve a experiência íntima da maternidade de Maria, sinta a necessidade de se expandir em louvores à Virgem Santa, quer com a oração esplêndida da Salve Rainha, quer através das invocações da Ladainha Lauretana? É o remate dum caminho interior que levou o fiel ao contacto vivo com o mistério de Cristo e da sua Mãe Santíssima.

A distribuição no tempo

38. O Rosário pode ser recitado integralmente todos os dias, não faltando quem louvavelmente o faça. Acaba assim por encher de oração as jornadas de tantos contemplativos, ou servir de companhia a doentes e idosos que dispõem de tempo em abundância. Mas é óbvio - e isto vale com mais forte razão ao acrescentar-se o novo ciclo dos mysteria lucis - que muitos poderão recitar apenas uma parte, segundo uma determinada ordem semanal. Esta distribuição pela semana acaba por dar às sucessivas jornadas desta uma certa `cor` espiritual, de modo análogo ao que faz a Liturgia com as várias fases do ano litúrgico.
Segundo a prática corrente, a segunda e a quinta-feira são dedicadas aos `mistérios da alegria`, a terça e a sexta-feira aos `mistérios da dor`, a quarta-feira, o sábado e o domingo aos `mistérios da glória`. Onde se podem inserir os ` mistérios da luz`? Atendendo a que os mistérios gloriosos são propostos em dois dias seguidos -sábado e domingo - e que o sábado é tradicionalmente um dia de intenso carácter mariano, parece recomendável deslocar para ele a segunda meditação semanal dos mistérios gozosos, nos quais está mais acentuada a presença de Maria. E assim fica livre a quinta-feira precisamente para a meditação dos mistérios da luz.
Esta indicação, porém, não pretende limitar uma certa liberdade de opção na meditação pessoal e comunitária, segundo as exigências espirituais e pastorais e sobretudo as coincidências litúrgicas que possam sugerir oportunas adaptações. Verdadeiramente importante é que o Rosário seja cada vez mais visto e sentido como itinerário contemplativo. Através dele, de modo complementar ao que se realiza na Liturgia, a semana do cristão, tendo o domingo - dia da ressurreição - por charneira, torna-se uma caminhada através dos mistérios da vida de Cristo, para que Ele Se afirme, na vida dos seus discípulos, como Senhor do tempo e da história.

CONCLUSÃO

« Rosário bendito de Maria, doce cadeia que nos prende a Deus »

39. Tudo o que foi dito até agora, manifesta amplamente a riqueza desta oração tradicional, que tem não só a simplicidade duma oração popular, mas também a profundidade teológica duma oração adaptada a quem sente a exigência duma contemplação mais madura.
A Igreja reconheceu sempre uma eficácia particular ao Rosário, confiando-lhe, mediante a sua recitação comunitária e a sua prática constante, as causas mais difíceis. Em momentos em que estivera ameaçada a própria cristandade, foi à força desta oração que se atribuiu a libertação do perigo, tendo a Virgem do Rosário sido saudada como propiciadora da salvação.
À eficácia desta oração, confio de bom grado hoje - como acenei ao princípio - a causa da paz no mundo e a causa da família.

A paz

40. As dificuldades que o horizonte mundial apresenta, neste início de novo milénio, levam-nos a pensar que só uma intervenção do Alto, capaz de orientar os corações daqueles que vivem em situações de conflito e de quantos regem os destinos das Nações, permite esperar num futuro menos sombrio. O Rosário é, por natureza, uma oração orientada para a paz, precisamente porque consiste na contemplação de Cristo, Príncipe da paz e « nossa paz » (Ef 2, 14). Quem assimila o mistério de Cristo - e o Rosário visa isto mesmo - apreende o segredo da paz e dele faz um projecto de vida. Além disso, devido ao seu carácter meditativo com a serena sucessão das `Avé Marias`, exerce uma acção pacificadora sobre quem o reza, predispondo-o a receber e experimentar no mais fundo de si mesmo e a espalhar ao seu redor aquela paz verdadeira que é um dom especial do Ressuscitado (cf. Jo 14, 27; 20, 21).
Depois, o Rosário é oração de paz também pelos frutos de caridade que produz. Se for recitado devidamente como verdadeira oração meditativa, ao facilitar o encontro com Cristo nos mistérios não pode deixar de mostrar também o rosto de Cristo nos irmãos, sobretudo nos que mais sofrem. Como seria possível fixar nos mistérios gozosos o mistério do Menino nascido em Belém, sem sentir o desejo de acolher, defender e promover a vida, preocupando-se com o sofrimento das crianças nas diversas partes do mundo? Como se poderia seguir os passos de Cristo revelador, nos mistérios da luz, sem se empenhar a testemunhar as suas `bem-aventuranças` na vida diária? E como contemplar a Cristo carregado com a cruz ou crucificado, sem sentir a necessidade de se fazer seu `cireneu` em cada irmão abatido pela dor ou esmagado pelo desespero? Enfim, como se poderia fixar os olhos na glória de Cristo ressuscitado e em Maria coroada Rainha, sem desejar tornar este mundo mais belo, mais justo, mais conforme ao desígnio de Deus?
Em suma o Rosário, ao mesmo tempo que nos leva a fixar os olhos em Cristo, torna-nos também construtores da paz no mundo. Pelas suas características de petição insistente e comunitária, em sintonia com o convite de Cristo para « orar sempre, sem desfalecer » (Lc 18, 1), aquele permite-nos esperar que, também hoje, se possa vencer uma `batalha` tão difícil como é a da paz. Longe de constituir uma fuga dos problemas do mundo, o Rosário leva-nos assim a vê-los com olhar responsável e generoso, e alcança-nos a força de voltar para eles com a certeza da ajuda de Deus e o firme propósito de testemunhar em todas as circunstâncias « a caridade, que é o vínculo da perfeição » (Col 3, 14).

A família: os pais...

41. Oração pela paz, o Rosário foi desde sempre também oração da família e pela família. Outrora, esta oração era particularmente amada pelas famílias cristãs e favorecia certamente a sua união. É preciso não deixar perder esta preciosa herança. Importa voltar a rezar em família e pelas famílias, servindo-se ainda desta forma de oração.
Se, na Carta apostólica Novo millennio ineunte, encorajei a celebração da Liturgia da Horas pelos próprios leigos na vida ordinária das comunidades paroquiais e dos vários grupos cristãos,(39)o mesmo desejo fazer quanto ao Rosário. Trata-se de dois caminhos, não alternativos mas complementares, da contemplação cristã. Peço, pois, a todos aqueles que se dedicam à pastoral das famílias para sugerirem com convicção a recitação do Rosário.
A família que reza unida, permanece unida.O Santo Rosário, por antiga tradição, presta-se de modo particular a ser uma oração onde a família se encontra. Os seus diversos membros, precisamente ao fixarem o olhar em Jesus, recuperam também a capacidade de se olharem sempre de novo olhos nos olhos para comunicarem, solidarizarem-se, perdoarem-se mutuamente, recomeçarem com um pacto de amor renovado pelo Espírito de Deus.
Muitos problemas das famílias contemporâneas, sobretudo nas sociedades economicamente evoluídas, derivam do facto de ser cada vez mais difícil comunicar. Não conseguem estar juntos, e os raros momentos para isso acabam infelizmente absorvidos pelas imagens duma televisão. Retomar a recitação do Rosário em família significa inserir na vida diária imagens bem diferentes - as do mistério que salva: a imagem do Redentor, a imagem de sua Mãe Santíssima. A família, que reza unida o Rosário, reproduz em certamedida o clima da casa de Nazaré: põe-se Jesus no centro, partilham-se com Ele alegrias e sofrimentos, colocam-se nas suas mãos necessidades e projectos, e d`Ele se recebe a esperança e a força para o caminho. 

... e os filhos 42. É bom e frutuoso também confiar a esta oração o itinerário de crescimento dos filhos. Porventura não é o Rosário o itinerário da vida de Cristo, desde a sua concepção até à morte, ressurreição e glória? Hoje torna-se cada vez mais árdua para os pais a tarefa de seguirem os filhos pelas várias etapas da sua vida. Na sociedade da tecnologia avançada, dos mass-media e da globalização, tudo se tornou tão rápido; e a distância cultural entre as gerações é cada vez maior. Os apelos mais diversos e as experiências mais imprevisíveis cedo invadem a vida das crianças e adolescentes, e os pais sentem-se às vezes angustiados para fazer face aos riscos que aqueles correm. Não é raro experimentarem fortes desilusões, constatando a falência dos seus filhos perante a sedução da droga, o fascínio dum hedonismo desenfreado, as tentações da violência, as expressões mais variadas de falta de sentido e de desespero.

Rezar o Rosário pelos filhos e, mais ainda, com os filhos, educando-os desde tenra idade para este momento diário de ` paragem orante` da família, não traz por certo a solução de todos os problemas, mas é uma ajuda espiritual que não se deve subestimar. Pode-se objectar que o Rosário parece uma oração pouco adaptada ao gosto das crianças e jovens de hoje. Mas a objecção parte talvez da forma muitas vezes pouco cuidada de o rezar. Ora, ressalvada a sua estrutura fundamental, nada impede que a recitação do Rosário para crianças e jovens, tanto em família como nos grupos, seja enriquecida com atractivos simbólicos e práticos, que favoreçam a sua compreensão e valorização. Por que não tentar? Uma pastoral juvenil sem descontos, apaixonada e criativa - as Jornadas Mundiais da Juventude deram-me a sua medida! - pode, com a ajuda de Deus, fazer coisas verdadeiramente significativas. Se o Rosário for bem apresentado, estou seguro de que os próprios jovens serão capazes de surpreender uma vez mais os adultos, assumindo esta oração e recitando-a com o entusiasmo típico da sua idade.

O Rosário, um tesouro a descobrir

43. Queridos irmãos e irmãs! Uma oração tão fácil e ao mesmo tempo tão rica merece verdadeiramente ser descoberta de novo pela comunidade cristã. Façamo-lo sobretudo neste ano, assumindo esta proposta como um reforço da linha traçada na Carta apostólica Novo millennio ineunte, na qual se inspiraram os planos pastorais de muitas Igrejas particulares ao programarem os seus compromissos a curto prazo.
Dirijo-me de modo particular a vós, amados Irmãos no Episcopado, sacerdotes e diáconos, e a vós, agentes pastorais nos diversos ministérios, pedindo que, experimentando pessoalmente a beleza do Rosário, vos torneis solícitos promotores do mesmo.
Também espero em vós, teólogos, para que desenvolvendo uma reflexão simultaneamente rigorosa e sapiencial, enraizada na Palavra de Deus e sensível à vida concreta do povo cristão, façais descobrir os fundamentos bíblicos, as riquezas espirituais, a validade pastoral desta oração tradicional. Conto convosco, consagrados e consagradas, a título especial chamados a contemplar o rosto de Cristo na escola de Maria.
Penso em vós todos, irmãos e irmãs de qualquer condição, em vós, famílias cristãs, em vós, doentes e idosos, em vós, jovens: retomai confiadamente nas mãos o terço do Rosário, fazendo a sua descoberta à luz da Escritura, de harmonia com a Liturgia, no contexto da vida quotidiana.
Que este meu apelo não fique ignorado! No início do vigésimo quinto ano de Pontificado, entrego esta Carta apostólica nas mãos sapientes da Virgem Maria, prostrando-me em espírito diante da sua imagem venerada no Santuário esplêndido que Lhe edificou o Beato Bártolo Longo, apóstolo do Rosário. De bom grado, faço minhas as comoventes palavras com que ele conclui a célebre Súplica à Rainha do Santo Rosário: « Ó Rosário bendito de Maria, doce cadeia que nos prende a Deus, vínculo de amor que nos une aos Anjos, torre de salvação contra os assaltos do inferno, porto seguro no naufrágio geral, não te deixaremos nunca mais. Serás o nosso conforto na hora da agonia. Seja para ti o último beijo da vida que se apaga. E a última palavra dos nossos lábios há-de ser o vosso nome suave, ó Rainha do Rosário de Pompeia, ó nossa Mãe querida, ó Refúgio dos pecadores, ó Soberana consoladora dos tristes. Sede bendita em todo o lado, hoje e sempre, na terra e no céu ».

Vaticano, 16 de Outubro de 2002, início do vigésimo quinto ano de Pontificado.

JOÃO PAULO II

Ano A - Mateus 9,9-13

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