Ano A - Mateus 9,9-13

 SÃO MATEUS APÓSTOLO E EVANGELISTA

Festa

– Correspondência de São Mateus à chamada do Senhor. A nossa correspondência.

– A alegria da vocação.

– Uma vocação essencialmente apostólica.

São Mateus, Apóstolo e Evangelista, nasceu em Cafarnaum, e quando Jesus o chamou para fazer parte do grupo dos Doze, exercia o ofício de cobrador de impostos. A Tradição é unânime em reconhecê-lo como o autor do primeiro Evangelho, escrito em arameu e traduzido pouco depois para o grego. Segundo a Tradição, pregou e sofreu o martírio no Oriente, provavelmente na Pérsia.

I. SÃO MARCOS, SÃO LUCAS e o próprio São Mateus narram a vocação deste Apóstolo imediatamente após o relato da cura do paralítico de Cafarnaum. Provavelmente no mesmo dia ou no dia seguinte, Jesus dirigiu-se às margens do lago seguido por uma grande multidão1. E no caminho passou pelo lugar onde se pagavam os tributos pela circulação de mercadorias de uma região para outra. Cafarnaum, além de um pequeno porto de mar, era uma cidade fronteiriça da região da Peréia, situada do outro lado do Jordão.

Mateus, como publicano, estava ao serviço de Herodes e, sem ser funcionário, era arrendatário de impostos. Esse ofício era mal visto e mesmo desprezado pelo povo, embora também fosse muito cobiçado porque permitia enriquecer-se em pouco tempo. Mateus devia ter uma boa posição, pois pôde oferecer um grande banquete em sua casa, de que participou grande número de publicanos e outros, que estavam sentados à mesa com eles2.

Passando Jesus, convidou-o a segui-lo. E ele, levantando-se, seguiu-o3. Foi uma resposta rápida e generosa. Mateus, que certamente conhecia o Mestre de outras ocasiões, devia estar à espera desse grande momento, pois não duvidou à primeira insinuação em deixar todas as coisas para seguir Jesus. Só Deus sabe o que viu em Mateus naquele dia, e só o Apóstolo sabe o que viu em Jesus para deixar imediatamente a mesa dos impostos e segui-lo. “Ao manifestar uma decisão pronta e ao desprender-se tão subitamente de todas as coisas da vida, Mateus testemunhava muito bem, pela sua perfeita obediência, que o Senhor o tinha chamado no momento oportuno”4.

O instante e a situação em que o Senhor se insinua numa alma e lhe pede uma entrega sem reservas são os que Deus previu na sua Providência, e são portanto os mais oportunos. Umas vezes, será em tenra idade e, para essa pessoa, esse será o melhor momento para seguir a chamada do Senhor. Outras, Cristo chama na maturidade e nas circunstâncias mais diversas, de família, trabalho, saúde, etc. Com a vocação, Deus concede a graça necessária para se responder prontamente e para sempre. Além disso, pode acontecer que, quando se diz não ao Senhor, na esperança de dizer-lhe sim mais adiante, num tempo que subjetivamente pareça mais oportuno, esse momento não se apresente, porque toda a resistência à graça endurece o coração5. Também é possível que o Senhor não passe uma segunda vez: que a chamada amorosa não volte a repetir-se. Isto levava Santo Agostinho a animar todos os fiéis a corresponderem à graça quando Deus a dá; e acrescentava: Timeo Iesum praetereuntem et non redeuntem, temo que Jesus passe e não volte6.

O Mestre fixa o seu olhar em todos nós, seja qual for a nossa idade e condição. Sabemos bem que Jesus passa perto da nossa vida, que nos olha e se dirige a cada um de nós de maneira singular. Convida-nos a segui-lo mais de perto e ao mesmo tempo – na maior parte dos casos – deixa-nos onde nos encontrávamos: no meio da sociedade, do trabalho, da família... “Pensa no que diz o Espírito Santo, e enche-te de pasmo e agradecimento: «Elegit nos ante mundi constitutionem» – escolheu-nos antes de criar o mundo –, «ut essemus sancti in conspectu eius!» – para que sejamos santos na sua presença.

“Ser santo não é fácil, mas também não é difícil. Ser santo é ser bom cristão: parecer-se com Cristo. – Aquele que mais se parece com Cristo, esse é mais cristão, mais de Cristo, mais santo.

“– E que meios temos? – Os mesmos dos primeiros fiéis, que viram Jesus ou o entreviram através dos relatos dos Apóstolos ou dos Evangelistas”7.

II. PARA CELEBRAR e agradecer a sua vocação, São Mateus deu um grande banquete, ao qual convidou os seus amigos, muitos dos quais eram tidos por pecadores. Esse gesto reflete a alegria do novo Apóstolo pela sua vocação, que é um grande bem e que deve alegrar-nos sempre.

Se reparamos apenas na renúncia que todo o convite de Deus para segui-lo com passo mais firme traz consigo, se nos detemos apenas no que é preciso deixar e não no dom de Deus, no bem que Ele vai realizar em nós e através de nós, pode acometer-nos a tristeza do jovem rico, que não quis deixar as suas riquezas e se retirou triste8; pensou apenas nas coisas que deixava, e não chegou a conhecer a maravilha de estar com Cristo e de ser instrumento para coisas grandes. “Talvez ontem fosses uma dessas pessoas amarguradas nos seus sonhos, decepcionadas nas suas ambições humanas. Hoje, desde que Ele se meteu na tua vida – obrigado, meu Deus! –, ris e cantas, e levas o sorriso, o Amor e a felicidade aonde quer que vás”9.

A vida de quem foi chamado por Cristo – e todos nós o fomos – não pode ser como a daquele personagem que Jesus menciona quando já parece ter concluído a parábola do filho pródigo: o irmão mais velho que permaneceu na casa paterna, que foi um bom trabalhador, que não saiu dos limites da fazenda, que foi fiel..., mas sem alegria, sem caridade para com o irmão que por fim acabava de voltar. É a imagem viva do justo que não consegue compreender que a possibilidade de servir a Deus e gozar da sua amizade e presença é já uma contínua festa. Não entende que a recompensa já se encontra no próprio serviço a Deus, que servir é reinar. Deus espera de nós um serviço alegre, não de má vontade nem forçado, porque Deus ama aquele que dá com alegria10. Quando servimos o Senhor, quando dizemos sim às suas chamadas, sempre temos suficientes motivos de festa, de ação de graças, de alegria.

São Mateus converteu-se numa testemunha excepcional da vida e dos atos do Mestre. Um pouco mais tarde, seria escolhido como um dos Doze que seguiriam o Senhor em todos os seus passos: escutou as suas palavras, contemplou os seus milagres, esteve entre os íntimos que celebraram a Última Ceia, assistiu à instituição da Eucaristia, ouviu o testamento do Senhor centrado no preceito do Amor e acompanhou Cristo no Horto das Oliveiras, onde começaria, com os outros discípulos, um calvário de angústia, especialmente por ter também abandonado Jesus. Depois, muito poucos dias depois, saboreou a alegria da Ressurreição e, antes de Ascensão, recebeu o mandato de levar a Boa Nova até os confins da terra. Mais tarde, também com os discípulos e a Santíssima Virgem, recebeu o fogo do Espírito Santo no dia de Pentecostes.

Ao escrever o seu Evangelho, reviveu sem dúvida todos os gratos momentos passados ao lado do Mestre. Compreendeu que a sua vida tinha valido a pena. Que diferença se tivesse ficado naquela manhã agarrado ao telônio dos impostos e não tivesse seguido Jesus que passava! A nossa vida, bem o sabemos, só vale a pena se a vivermos junto de Cristo, com uma correspondência cada vez mais fiel..., se soubermos responder a cada apelo de Jesus com sim pronto e alegre.

III. AO BANQUETE oferecido por Mateus assistiram os seus amigos e muitos conhecidos. Alguns eram publicanos. Os fariseus e escribas murmuravam entre si e diziam aos discípulos de Jesus: Por que comeis e bebeis com os publicanos e pecadores?11 São Jerônimo, numa nota à margem do texto e em tom jocoso, anota que aquilo deve ter sido um festim de pecadores.

O Mestre assistiu ao banquete em casa do novo discípulo. E deve tê-lo feito de bom grado, com gosto, aproveitando aquela oportunidade para conquistar a simpatia dos amigos de Mateus. E aos comentários mal-intencionados dos fariseus, respondeu-lhes com um ensinamento cheio de sabedoria e simplicidade: Os sãos não têm necessidade de médico, mas sim os enfermos12.

Muitos dos assistentes ao banquete sentiram-se acolhidos pelo Senhor, e é provável que, decorrido algum tempo, tivessem recebido o batismo e passado a ser cristãos fiéis. O Senhor ensina-nos com o seu exemplo a estar abertos a todos para ganhar a todos. “O diálogo de salvação não ficou condicionado pelos méritos daqueles a quem se dirigia, nem pelos resultados favoráveis ou contrários: Os sãos não têm necessidade de médico, mas sim os enfermos... O diálogo de salvação abriu-se, é oferecido a todos; abriu-se para todos os homens sem discriminação alguma...”13

Ninguém pode ser-nos indiferente; quanto maior a necessidade, maior deve ser o nosso empenho apostólico, maiores os meios sobrenaturais e humanos que temos de empregar. Vejamos agora na nossa oração se mantemos um trato acolhedor com todas as pessoas, mesmo com aquelas que parecem estar mais longe das nossas idéias e do nosso modo cristão de pensar e de ver a vida.

“Tens razão. – Do alto do cume – escreves-me –, em tudo o que se divisa (e é um raio de muitos quilômetros), não se enxerga uma única planície; por detrás de cada montanha, outra ainda. Se em algum lugar a paisagem parece suavizar-se, mal se levanta o nevoeiro, aparece uma serra que estava oculta.

“É assim mesmo, assim tem que ser o horizonte do teu apostolado; é preciso atravessar o mundo. – Mas não há caminhos feitos para vós... Tereis que fazê-los, através das montanhas, à força das vossas passadas”14.

Agradeçamos hoje ao Apóstolo o Evangelho que nos legou. E peçamos-lhe, por intercessão da Virgem Maria, que saibamos também ir em busca dos nossos antigos amigos – e procurar sempre outros novos – para que conheçam o Mestre e se sentem à mesa com Ele. Que o Senhor nos torne audazes e nos dê espírito de conquista.

Meditações Diárias - Terça-Feira 19/09/2023

  24ª SEMANA ANO A - TEMPO COMUM

Primeira Leitura (1Tm 3,1-13)

Evangelho (Lc 7,11-17)


5. O RETORNO À VIDA

– Recorrer ao Coração misericordioso de Jesus em todas as necessidades da alma e do corpo.

– A misericórdia da Igreja.

– A misericórdia divina no Sacramento do perdão. Condições de uma boa confissão.

I. JESUS DIRIGIA‑SE a uma pequena cidade chamada Naim1, acompanhado dos seus discípulos e de uma grande multidão. Ao entrar na cidade, encontrou‑se com um grupo numeroso de pessoas que levavam para ser enterrado um defunto, filho único de uma mulher viúva, e é muito provável que se detivesse esperando que o cortejo fúnebre passasse. Então, olhando para a mãe, moveu‑se de compaixão para com ela.

Os Evangelistas referem em muitas ocasiões esses sentimentos do Coração de Jesus quando depara com a desgraça e o sofrimento; nunca se desvia deles. Ao ver a multidão – escreve São Mateus, relatando outro episódio semelhante – Jesus compadeceu‑se das multidões, porque eram como ovelhas sem pastor2; quando se encontra com o leproso que o procurava, compadeceu‑se dele e disse‑lhe: Quero; sê limpo3; quando a multidão o seguia, sem se preocupar com o alimento, apesar de que o dia ia declinando, disse aos seus discípulos: Tenho compaixão deste povo, e multiplicou os pães e os peixes4; quando viu perto dEle um cego, compadecido, tocou‑lhe os olhos e devolveu‑lhe a vista5.

A misericórdia é a atitude “própria de Deus” – afirma São Tomás de Aquino6 –, e manifesta‑se plenamente em Jesus Cristo tantas vezes quantas depara com o sofrimento. “Jesus revelou, sobretudo com o seu estilo de vida e com as suas ações, como o amor está presente no mundo em que vivemos, o amor operante, o amor que se dirige ao homem e abraça tudo aquilo que forma a sua humanidade. Esse amor faz‑se notar especialmente no contacto com o sofrimento, a injustiça, a pobreza, no contacto com toda a condição humana histórica, que manifesta de vários modos as limitações e a fragilidade, tanto físicas como morais, do homem”7. Todo o Evangelho, mas especialmente as passagens que nos mostram o Coração misericordioso de Jesus, devem mover‑nos a recorrer a Ele nas necessidades da alma e do corpo. Ele continua no meio dos homens, e somente espera que nos deixemos ajudar.

Senhor, ouve a minha oração, e chegue a ti o meu clamor. Não me escondas o teu rosto no dia da minha angústia. Inclina para mim o teu ouvido; quando eu te invocar, ouve‑me prontamente, recitam os sacerdotes na Liturgia das Horas de hoje8. E o Senhor, que nos escuta sempre, vem em nosso auxílio sem se fazer esperar.

II. JESUS, AO VER a mulher, movido de compaixão para com ela, disse‑lhe: Não chores. E aproximou‑se e tocou no esquife. E os que o levavam pararam. Então disse ele: Jovem, eu te digo, levanta‑te. E sentou‑se o que tinha estado morto e começou a falar. E Jesus entregou‑o à sua mãe.

Muitos Padres viram nesta mãe que recupera o filho morto uma imagem da Igreja, que também recebe os seus filhos mortos pelo pecado, prolongando assim a ação misericordiosa de Cristo. A Igreja, que é Mãe, com a sua dor “intercede por cada um dos seus filhos como fez a mãe viúva pelo seu filho único”9. Ela “alegra‑se diariamente – comenta Santo Agostinho – com os homens que ressuscitam nas suas almas. Aquele, morto corporalmente; estes, espiritualmente”10. Se o Senhor se compadece de uma multidão faminta, como não há de compadecer‑se de quem sofre uma doença da alma ou já traz em si a morte para a vida eterna?

A Igreja é misericordiosa “quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais é depositária e dispensadora”11, especialmente da Eucaristia e do Sacramento da Penitência ou Reconciliação. “A Eucaristia aproxima‑nos sempre daquele amor que é mais forte do que a morte”, diz João Paulo II. E o sacramento da Penitência, continua o Papa, “aplaina o caminho a cada homem, mesmo quando está sobrecarregado com graves culpas. Neste sacramento, todos os homens podem experimentar de modo singular a misericórdia, isto é, aquele amor que é mais forte do que o pecado”12. É Jesus que passa novamente pelas nossas ruas e cidades e se apieda dos males de que padece esta humanidade enferma; que se apieda sobretudo dos homens vergados sob o peso do único mal absoluto que existe, o pecado.

A Sagrada Eucaristia é fonte de fortaleza, como o é o alimento em relação ao corpo. Conta‑se que, nos tempos antigos, um rei enviou de presente a um vizir árabe a espada que lhe tinha servido para vencer inúmeras batalhas. O agraciado quis experimentá‑la no primeiro combate em que entrou, mas, com grande surpresa sua, saiu derrotado. Mandou então dizer ao rei que estava decepcionado. Ao que o rei respondeu: “Eu te mandei a minha espada, mas não o meu braço”. A Sagrada Comunhão é o braço de Deus, é todo o seu poder, que atua dentro de nós e dá vigor à nossa capacidade de luta, multiplicando‑a.

Este é o pão que desceu do céu; não é como o pão que os vossos pais comeram e morreram. Quem come deste pão viverá eternamente13, disse o Senhor em Cafarnaum. A Eucaristia, quando a recebemos nas devidas disposições de alma e corpo, reforça em nós os mecanismos de defesa, ajudando‑nos a resistir às tentações e preservando‑nos sobretudo de cair num estado anêmico de tibieza que é fonte de mediocridade espiritual e, mais cedo ou mais tarde, de quedas que podem ser sérias. Perguntemo-nos se sabemos corresponder a essa prova da misericórdia de Deus procurando comungar assiduamente, com fé na graça do Sacramento. “Quantos anos comungando diariamente! – Qualquer outro seria santo – disseste‑me –, e eu, sempre na mesma!

“– Meu filho – te respondi –, continua com a Comunhão diária e pensa: Que seria de mim se não tivesse comungado?”14

III. A MISERICÓRDIA DE DEUS é infinita; inexaurível “é a prontidão do Pai em acolher os filhos pródigos que voltam para casa. São infinitas também a prontidão e a força do perdão que brotam continuamente do admirável valor do Sacrifício do Filho. Não há nenhum pecado humano que prevaleça sobre esta força ou sequer a limite. Por parte do homem, o que pode limitá‑la é somente a falta de boa vontade, a falta de prontidão na conversão e na penitência, isto é, a permanência na obstinação, que leva a opor‑se à graça e à verdade”15. Somente nós podemos impedir que o olhar misericordioso de Jesus, que cura e liberta, chegue ao fundo da nossa alma.

Na medida em que vamos conhecendo mais o Senhor e seguindo os seus passos, sentimos uma maior necessidade de purificar a alma. E o primeiro meio de que dispomos para consegui‑lo é esmerar‑nos em cada uma das nossas confissões, evitando a rotina, aprofundando no amor e na dor. Aprofundar como se cada confissão, sempre única, fosse a última; fugindo da precipitação e da superficialidade.

Para isso, devemos ter em conta as cinco condições necessárias para uma boa confissão, que é bom repassarmos de vez em quando para obtermos um fruto crescente desse instrumento da misericórdia divina: exame de consciência, humilde, feito na presença de Deus, descobrindo as causas e porventura os hábitos que motivaram as nossas faltas; a dor dos pecados, a contrição, com um sentido mais vivo da gravidade do pecado; o propósito de emenda concreto e firme, que muitas vezes é o melhor índice de uma boa confissão; a confissão dos pecados, que consiste numa verdadeira acusação da falta cometida, com o desejo de receber o perdão, e não um relato mais ou menos geral da situação da alma ou das coisas que nos preocupam; e cumprir a penitência, pela qual nos associamos ao sacrifício infinito de expiação de Cristo: essa penitência que o sacerdote nos impõe – tão mitigada maternalmente pela Igreja – não é simplesmente uma obra de piedade, mas desagravo, reparação e satisfação pelas culpas contraídas, em união com os sofrimentos de Cristo no Calvário.

Quando Jesus instituiu o sacramento da Penitência, tinha os seus olhos cheios de bondade postos em cada um dos que haveríamos de vir depois, nos nossos erros, nas nossas fraquezas e nas ocasiões em que iríamos talvez mudar‑nos para muito longe da Casa do Pai. E deixava‑nos ao mesmo tempo o sacramento da paciência divina, o sacramento em que o nosso Pai‑Deus se coloca todos os dias às portas da eternidade para esperar ansiosamente o regresso dos filhos que partiram.

Peçamos a Nossa Senhora, refúgio dos pecadores – nosso refúgio –, que nos ajude a aproximar‑nos do sacramento da Confissão cada vez mais bem preparados. E pensemos também na grande obra de misericórdia que levamos a cabo quando conseguimos que um amigo, um parente ou um conhecido recobre ou aumente, pela recepção deste sacramento, a Vida sobrenatural da sua alma.


Sacramento da Penitência

 Sacramento da Penitência


Para isso, devemos ter em conta as cinco condições necessárias para uma boa confissão, que é bom repassarmos de vez em quando para obtermos um fruto crescente desse instrumento da misericórdia divina: 

1- Exame de consciência, humilde, feito na presença de Deus, descobrindo as causas e porventura os hábitos que motivaram as nossas faltas; 

2- A dor dos pecados, a contrição, com um sentido mais vivo da gravidade do pecado; 

3- O propósito de emenda concreto e firme, que muitas vezes é o melhor índice de uma boa confissão; 

4- A confissão dos pecados, que consiste numa verdadeira acusação da falta cometida, com o desejo de receber o perdão, e não um relato mais ou menos geral da situação da alma ou das coisas que nos preocupam; 

5- E cumprir a penitência, pela qual nos associamos ao sacrifício infinito de expiação de Cristo: essa penitência que o sacerdote nos impõe – tão mitigada maternalmente pela Igreja – não é simplesmente uma obra de piedade, mas desagravo, reparação e satisfação pelas culpas contraídas, em união com os sofrimentos de Cristo no Calvário.

Quando Jesus instituiu o sacramento da Penitência, tinha os seus olhos cheios de bondade postos em cada um dos que haveríamos de vir depois, nos nossos erros, nas nossas fraquezas e nas ocasiões em que iríamos talvez mudar‑nos para muito longe da Casa do Pai. E deixava‑nos ao mesmo tempo o sacramento da paciência divina, o sacramento em que o nosso Pai‑Deus se coloca todos os dias às portas da eternidade para esperar ansiosamente o regresso dos filhos que partiram.

Peçamos a Nossa Senhora, refúgio dos pecadores – nosso refúgio –, que nos ajude a aproximar‑nos do sacramento da Confissão cada vez mais bem preparados. E pensemos também na grande obra de misericórdia que levamos a cabo quando conseguimos que um amigo, um parente ou um conhecido recobre ou aumente, pela recepção deste sacramento, a Vida sobrenatural da sua alma.

Meditação Diária - Segunda Feira 18/09/2023


TEMPO COMUM. VIGÉSIMA QUARTA SEMANA. SEGUNDA‑FEIRA

4. A FÉ DE UM CENTURIÃO

– A humildade, primeira condição para crer.

– O crescimento da fé.

– Humildade para perseverar na fé.

I. É POSSÍVEL que a cena narrada no Evangelho da Missa de hoje1 tenha acontecido ao cair da tarde, quando Jesus, tendo acabado de instruir o povo, entrou na cidade de Cafarnaum. Nesse momento, chegaram uns anciãos dos judeus que, aproximando‑se do Senhor, intercederam por um centurião cujo servo, que ele amava muito, estava à morte.

Este gentio surge aos nossos olhos como uma alma de grandes virtudes. É um homem que sabe mandar, pois diz a um soldado vai, e ele vai; e a outro: vem, e ele vem. E ao mesmo tempo tem um grande coração, sabe querer aos que o rodeiam, como é o caso desse servo doente, por quem faz tudo o que pode para que se cure. É um homem generoso, que tinha construído a sinagoga da cidade: faz‑se respeitar e querer, pois, como escreve São Lucas, os judeus que recorreram a Jesus insistiram dizendo‑lhe: Ele merece que lhe faças esta graça, porque é amigo da nossa nação.

Depois de ter recebido essas recomendações, Jesus pôs‑se a caminho. E quando já estava perto da casa, o centurião enviou uma nova embaixada ao Mestre para dizer‑lhe: Senhor, não te incomodes, porque eu não sou digno de que entres em minha casa. Foi por isso que nem eu mesmo me achei digno de ir ter contigo; mas dize uma só palavra e o meu servo será curado.

Esta fé cheia de humildade conquistou o coração de Jesus, de tal maneira que o Senhor ficou admirado; e, voltando‑se para a multidão que o seguia, disse. Em verdade vos digo que não encontrei tamanha fé em Israel.

A humildade é a primeira condição para crer; é o caminho amplo pelo qual se chega à fé e se colabora para aumentá‑la: abre‑nos a via de acesso a Jesus. Santo Agostinho, ao comentar esta passagem do Evangelho, diz que a humildade foi a porta por onde Jesus entrou para tomar posse daquilo que já possuía2.

Peçamos hoje ao Senhor uma sincera humildade que nos aproxime dEle, que aumente e fortaleça a nossa fé e que nos disponha a fazer em tudo a sua santíssima Vontade. “Confiaste‑me que, na tua oração, abrias o coração com as seguintes palavras: «Considero, Senhor, as minhas misérias, que parecem aumentar apesar das tuas graças, sem dúvida pela minha falta de correspondência. Reconheço a ausência em mim da menor preparação para o empreendimento que pedes. E quando leio nos jornais que tantos e tantos homens de prestígio, de talento e de dinheiro falam e escrevem e organizam para defender o teu reinado... olho para mim e vejo‑me tão ignorante e tão pobre, numa palavra, tão pequeno... que me encheria de confusão e de vergonha se não soubesse que Tu me queres assim. Ó Jesus! Por outro lado, sabes bem que coloquei a teus pés, com a maior das boas vontades, a minha ambição... Fé e Amor: Amar, Crer, Sofrer. Nisto, sim, quero ser rico e sábio, mas não mais sábio nem mais rico do que aquilo que Tu, na tua Misericórdia sem limites, tenhas determinado: porque devo pôr todo o meu prestígio e honra em cumprir fielmente a tua justíssima e amabilíssima Vontade»”3.

II. EM VERDADE VOS DIGO que não encontrei tamanha fé em Israel. Que elogio imenso! Com que alegria não teria o Senhor pronunciado essas palavras! Meditemos hoje como é a nossa fé e peçamos a Jesus que nos conceda a graça de crescer nela dia a dia.

Santo Agostinho ensinava que ter fé é “credere Deo, credere Deum, credere in Deum4, numa forma clássica entre os teólogos. Quer dizer: dar crédito a Deus, isto é, aceitar a sua autoridade que vem ao nosso encontro e se dá a conhecer; crer em todas as verdades que Deus nos comunica nesse encontro pessoal; e, por último, crer em Deus, amando‑o, confiar nEle sem medida. Progredir na fé é crescer nestas facetas.

O primeiro aspecto exige que tenhamos uma séria preocupação por melhorar a nossa formação doutrinal, por crescer no conhecimento de Deus. Um meio muito acessível de consegui-lo é sermos fiéis à prática da leitura espiritual – dez a quinze minutos por dia –, que nos permitirá adquirir ao longo dos anos todas as noções fundamentais de que necessitamos para assentar em bases firmes a nossa fé e a nossa piedade. Essa leitura deve abranger sucessiva ou alternadamente obras seguras sobre a espiritualidade cristã, teologia para leigos e documentos do Magistério pontifício relativos aos mistérios da fé e aos princípios morais.

O segundo aspecto implica crescer na relação pessoal com o Senhor, nosso Criador e Redentor, procurar diariamente o colóquio com Ele na oração, a plena união na Sagrada Eucaristia e depois a sua presença em tantas ocasiões no meio do trabalho, nas dificuldades e nas alegrias... É vê‑lo sempre muito perto da nossa vida diária5.

O terceiro aspecto é o coroamento e a fruição dos outros dois: é o amor que toda a fé verdadeira traz consigo. “Senhor, creio em ti e amo‑te, falo‑te, mas não como a um estranho, porque, ao relacionar‑me contigo, vou‑te conhecendo e é impossível que te conheça e não te ame; mas se eu te amo, vejo claramente que devo lutar por viver, dia após dia, de acordo com a tua palavra, a tua vontade e a tua verdade”6.

III. E, VOLTANDO PARA CASA, os que tinham sido enviados encontraram o servo curado.

Todos os milagres que Jesus fez procediam de um Coração cheio de amor e de misericórdia; nunca realizou um prodígio que ferisse alguém. Também não realizou nenhum milagre em proveito próprio. Vemo‑lo passar fome e não converter as pedras em pão, ter sede e pedir de beber a uma mulher samaritana, junto do poço de Jacó7. E quando Herodes lhe exige um prodígio, permanece em silêncio, muito embora soubesse que aquele homem podia libertá‑lo...

O fim dos milagres que o Senhor realizou foi o bem daqueles que se aproximavam dEle: para que creiam que Tu me enviaste8. As suas obras de misericórdia corporais transformaram‑se num bem muito maior para a alma. Por isso, naquela tarde, quando o centurião pôde ver curado o seu servo, o milagre uniu‑o mais a Jesus. Não nos custa admitir que, depois do Pentecostes, tenha sido um dos primeiros gentios a receber o Batismo, e que terá sido fiel ao Mestre até o fim dos seus dias.

A fé verdadeira leva‑nos à união com Jesus Cristo Redentor, com o seu poder sobre todas as criaturas, e confere‑nos uma segurança e uma firmeza que nos colocam ao abrigo de todas as circunstâncias humanas, de qualquer acontecimento que possa sobrevir. Mas, para termos essa fé, necessitamos também da humildade do centurião: sabermo‑nos nada diante de Jesus; não desconfiarmos nunca do seu auxílio, por mais que demore em chegar ou chegue de uma maneira diferente da que esperávamos.

Santo Agostinho afirmava que todos os dons de Deus podiam reduzir‑se a este: “receber a fé e perseverar nela até o último instante da vida”9. A humildade de saber que podemos trair a fé recebida, que somos capazes de separar‑nos do Mestre, ajudar‑nos‑á a não abandonar nunca o trato habitual com Ele, bem como esses meios de formação que nos ensinam a conhecer melhor a Deus e nos proporcionam os argumentos de que precisamos para dá‑lo a conhecer. O verdadeiro obstáculo para perseverar na fé é a soberba. Deus resiste aos soberbos e dá a sua graça aos humildes10. Por isso temos de pedir a humildade com muita freqüência.

Em Nossa Senhora encontramos essa união profunda entre a fé e a humildade. Santa Isabel, impelida pelo Espírito Santo, cumprimenta‑a com estas palavras: Bem‑aventurada és tu que creste... E o Espírito Santo coloca na boca da Virgem Mãe uma resposta que é um cântico de humildade: – Uma imensa felicidade embarga a minha alma, e todas as gerações me chamarão bem‑aventurada... Mas a razão última não é nada meu: Deus pôs os olhos na humildade da sua serva, abriu o meu coração e cumulou‑o de graças...11

Recorremos a Nossa Senhora para que nos ensine a crescer nesta virtude em que a fé assenta os seus alicerces firmes. “A Escrava do Senhor é hoje a Rainha do Universo. Quem se humilha será exaltado (Mt 23, 12). Saibamos colocar‑nos ao serviço de Deus sem condições e seremos elevados a uma altura inacreditável; participaremos da vida íntima de Deus, seremos como deuses!, mas pelo caminho regulamentar: o da humildade e docilidade ao querer do nosso Deus e Senhor”12.

(1) Lc 7, 1‑10; (2) cfr. Santo Agostinho, Sermão 46, 12; (3) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Forja, Quadrante, São Paulo, 1987, n. 822; (4) Santo Agostinho, Sermão 144, 2; (5) cfr. Pedro Rodríguez, Fe y vida de fe, EUNSA, Pamplona, 1974, págs. 124‑125; (6) ibid., pág. 125; (7) cfr. Jo 4, 7; (8) Jo 11, 42; (9) Santo Agostinho, Sobre o dom da perseverança, 17, 47; 50, 641; (10) Ti 4, 6; (11) cfr. Lc 1, 45 e segs.; (12) Antonio Orozco Delclos, Olhar para Maria, Quadrante, São Paulo, 1992.

As bodas de Caná

 

Pierre de Craon



 'Et die tertia nupciae factae sunt in Cana Galileae;
et erat mater ejus ibi.'
(Jo II, 1)

Foi nas bodas de Caná que Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo seu comparecimento, estabeleceu o sacramento do matrimônio.

Repare-se que estas núpcias foram realizadas 'in die tertia', no terceiro dia. Ora, conforme nos explica e ensina São Paulo na sua Epístola aos Efésios (V,32), o Matrimônio é símbolo de um sacramento muito mais alto: o das núpcias de Cristo com a Igreja: 'Este mistério é grande, mas eu o digo em relação a Cristo e à Igreja'. Pois assim como o marido e a mulher têm filhos segundo a carne, assim Cristo e a Igreja geram os filhos de Deus.

São Tomás de Aquino, em seus esplêndidos 'Comentários sobre o Evangelho de São João' (Tradução, notas e Prefácio de M.D. Philippe O P., Edição Les Amis de Saint Jean, Rimont - Buxy , 1977), repete o que diz São Paulo: 'Em sentido místico, as núpcias significam a união de Cristo com a Igreja' (Ed. Cit. Cap. II, Lição I, nº 338, vol. I , p. 338).

Ora, toda geração cristã legítima se faz através do matrimônio. Era, pois, muito conveniente Cristo, cabeça divina da Igreja e seu Esposo, principiasse sua ação apostólica, pela instituição do matrimônio. Daí ter ele comparecido a essas núpcias, em Caná, juntamente com seus Apóstolos e com sua Mãe Santíssima. 'Et mater ejus ibi'. E sua mãe estava aí.

Também era muito próprio que isto ocorresse 'in tertia die', porque este era o terceiro dia em que Deus estabelecia uma união com os homens. Pois, no primeiro dia do homem, na manhã original da criação de Adão e Eva, Deus os abençoou e estabeleceu que eles deviam 'crescer e multiplicar-se' (Cfr.Gen. II, 28), a fim de que muitos participassem da vida e felicidade divinas. E esta foi, em certo sentido, a primeira aliança de Deus com o homem. E a esta primeira aliança o homem foi infiel quando cometeu o pecado original.

Num segundo dia, Deus firmou sua Aliança com Abraão (Gen. XII, 2-3), prometendo-lhe uma grande descendência, assim como a sua benção e proteção. Foi dessa aliança que nasceu o povo eleito, com o qual Deus firmou seu pacto no Sinai.

Agora, 'in die tertia', Cristo instituía o sacramento do Matrimônio, imagem de suas núpcias eternas com a Santa Igreja.

E São Tomás, comentando essa expressão – 'in die tertia' – diz que o primeiro dia foi o da lei natural; o segundo foi o da lei de Moisés; e o terceiro foi o dia da graça (Op. e ed. Cits. Cap. II Lição I, nº 338, p. 325).

Esta ação de Cristo se deu em Caná da Galiléia. Ora, Caná significa zelo, e o nome Galiléia tem raiz em Galut, que significa exílio. Porque, a Sabedoria divina exilando-se do céu, encarnou-se em Cristo, para , ardendo em zelo, vir a esta nossa terra de exílio, a fim de salvar os homens.

E Deus, Nosso Senhor, se encarnou para salvar a todos os homens, e não apenas os judeus. Por essa razão, Ele nasceu na Judéia, mas fez seu primeiro milagre e começou sua pregação na Galiléia. Ora, a Galiléia era mal vista pelos judeus, porque, depois do Cisma das Dez Tribos, ela pertencera ao Reino de Israel, e este Reino separara-se do culto oficial judaico no Templo de Jerusalém. Além disso, a Galiléia estava em próximo contato com as nações pagãs, sofrendo a influência dos fenícios idólatras. Por todas estas razões é que Natanael duvidou que o Messias pudesse vir de Nazareth, perguntando : 'De Nazareth pode, porventura, sair coisa que seja boa ? ' ( Jo. I, 40).

E, entretanto, foi naquela que era chamada a 'Galiléia das nações', isto é, o exílio das nações, foi lá que cristo estabeleceu suas núpcias com a Igreja, porque, após a apostasia de Israel, Deus faria sua aliança com os gentios, no exílio.

Era, pois, entre os galileus, embora menos desprezados que os samaritanos pelos judeus, que Cristo ia iniciar a sua pregação. Queria Ele demonstrar assim que seu zelo não se limitava aos judeus, descendentes de Abraão, mas que Ele vinha, ao terceiro dia, para salvar todos os filhos de Adão.

Os noivos de Caná eram judeus, membros da Antiga Aliança, e suas núpcias se davam ainda de acordo com a Lei de Moisés e os costumes da Sinagoga. Eles representavam então as núpcias de Deus com a Sinagoga, que São Paulo comparou com as núpcias de Abraão com sua escrava Agar, e a de Jacó com Lia. Agar era a escrava e não a esposa legítima e primeira, e Lia tinha os olhos doentes e, por isso, não via bem. Assim, a Sinagoga foi a escrava e não a verdadeira esposa, e, quando chegou o Esposo, ela não o reconheceu, porque não viu nEle a realização das profecias, Ela 'foi cega ao meio dia', hora em que levantaram Cristo na cruz no Calvário. Pois, como o próprio Moisés profetizara, caso Israel fosse infiel: ' O Senhor te fira de loucura e de cegueira e de frenesi, de sorte que andes às apalpadelas ao meio dia, como um cego costuma andar às apalpadelas nas trevas, e não acertes os teus caminhos' (Deut. XXVIII, 29). E Isaías confirmou isto ao profetizar: 'Tira para fora o povo cego, apesar de ter olhos, o povo surdo, apesar de ter ouvidos' ( Is. XLVII,8).

Mas Sara, a esposa legítima, foi abençoada, mesmo que seu filho tivesse nascido depois do filho da escrava. E Raquel, a segunda esposa de Jacó, mas que ele desejara 'desde o Princípio', Raquel tinha olhos claros e que voam bem, por isso o seu nome significa visão de Deus, e seu filho foi o preferido de seu esposo.

No Templo de Jerusalém, o povo da Antiga Aliança ofertava a Deus bois e cordeiros, o sangue e a gordura deles. Eram sacrifícios puramente materiais que faziam para reconhecer o senhorio de Deus sobre tudo o que possuíam. Estes sacrifícios simbolizavam o sacrifício que ia ser realizado no Calvário, e repetido no sacrifício da Missa sobre os altares da Igreja.

Os sacrifícios materiais dos judeus tinham pouco valor intrínseco. De fato, de que servem para Deus carneiros e bois imolados? Ademais, nem estes pobres sacrifícios materiais os judeus faziam de coração puro e com generosidade, e tinham se tornado cegos a seu significado.

Este vazio dos sacrifícios judaicos foi simbolizado no fato de que, em Caná, o vinho da festa de núpcias acabara nas urnas de pedra dos judeus. A incomparável superioridade do valor sacrifício de Cristo no Calvário e nas Missas – sacrifícios de valor infinito porque neles se imola o próprio Filho de Deus – é figurada na superioridade imensa do vinho feito miraculosamente por Cristo, em Caná, sobre o vinho que fora servido inicialmente aos convivas judeus.

Nas bodas de Caná, estavam presentes os Apóstolos de Cristo e sua Mãe Santíssima que eram membros do povo judeu, fiéis à revelação e à lei mosaica. Eles eram os restos fiéis do povo eleito, que sofriam com a decadência religiosa e moral dos filhos de Abraão, e com a cegueira dos sacerdotes, saduceus e fariseus.

Por essa razão, Nossa Senhora, cheia de zelo e de prestimosa caridade, é quem observa a Cristo: 'Eles não têm mais vinho' ( Jo, II, 3).

Falando da situação embaraçosa e humilhante em que se encontravam os pobres noivos de Caná, ela se referia, de fato e num plano superior, à situação lastimável do povo eleito, que já não tinha mais 'vinho' em seu coração, para ofertar a Deus no Templo. Era Israel como as virgens loucas da parábola, que já não tinham óleo em suas lâmpadas, quando chegou o esposo.

E que vinho era que faltava aos judeus?

São Tomás, no seu Comentário ao Evangelho de São João, que vimos citando, explica que aos judeus faltavam então três vinhos: 1º. o vinho da Justiça; 2º o vinho da Sabedoria; 3º o vinho da Caridade. Porque a Justiça dos judeus no Antigo Testamento era imperfeita, sua Sabedoria era em figura e não real, e sua Caridade não era filial, mas servil. (Cfr. São Tomás, Op. Cit. Cap. II, lição I, nº 347, vol. I, p. 332).

E por que estas virtudes foram comparadas por Cristo ao vinho?

O mesmo Aquinate no-lo explica dizendo: ' ...o vinho é áspero, e é a esse título que a Justiça é chamada vinho(...) por outro lado, 'o vinho alegra o coração do homem' (Sl. CIII,15). É nisto que a Sabedoria é vinho, porque sua meditação traz a alegria mais viva (...) 'Da mesma forma, o vinho inebria (...) por esta razão se diz que a caridade é um vinho(...) E a Caridade é dita ainda vinho em razão do ardor que ele produz' ( São Tomás, Op. Cit. Cp. II, lição I, nº 347, Ed. Cit., Vol. I, pp. 331-332).

Quando Nossa Senhora disse a Cristo : 'Eles não têm mais vinho', a resposta de Nosso Senhor à sua Mãe, à primeira vista, pareceria dura àqueles que não possuem verdadeira compreensão da Sagrada Escritura. Disse Ele: 'Quid mihi et tibi est, mulier? Nondum venit hora mea' _ 'mulher, que temos Eu e tu com isso? Ainda não chegou a minha hora'. ( Jo. II, 4).

Os protestantes se rejubilam, porque, segundo eles, Cristo teria dado uma resposta dura senão grosseira à sua Mãe, por chamá-la simplesmente de 'mulher' e não de Mãe. Na sua malícia esses protestantes nem se dão conta que, dizendo isso, estão acusando ao próprio Cristo Deus de faltar com a honra devida aos pais, como também de faltar com a virtude da mansidão.

Ora, examinando-se melhor a resposta de Cristo, se vê como ela é, de fato, elogiosa para com a Virgem Maria. Em primeiro lugar, convém lembrar que Ele a chamou de 'mulher', também no Calvário, dizendo do alto da Cruz: 'Mulher, eis aí o teu filho' ( Jo. XIX, 26).

Chamando-a de 'Mulher', Ele fala como Deus à sua criatura. Mas, ainda mais importante do que isso para compreender o texto, é que Cristo chama sua Mãe Santíssima de 'Mulher', para que todos reconheçam nela aquela 'mulher' que profetizou no Gênesis, quando amaldiçoou a serpente: 'Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua raça e a dela, e ela mesma te esmagará a cabeça' (Gen. III, 15).

Cristo, então, chama sua Mãe de mulher, para que todos reconheçam nela a mulher , aquela que esmagou a cabeça da serpente ao consentir na Encarnação do Verbo, 'Semine ejus', o Filho de Deus nascido de Maria Virgem. E assim como de Cristo se disse bem propriamente 'Ecce Homo' – Eis o Homem -- , assim também é próprio dizer da Virgem Maria Mãe de Deus: 'Ecce Mulier' , Eis a Mulher, Mater et Virgo, aquela que possui as duas perfeições mais importantes da 'Mulher': ser Mãe e ser Virgem.

São Tomás comenta que Cristo chama Maria de mulher, para mostrar que Ele era Filho de Deus e de uma mulher, a fim de combater todas as heresias gnósticas, como a dos maniqueus e a dos cátaros, que condenavam a matéria como sendo má em si, e obra do deus do mal. Por isso, maniqueus e cátaros condenavam a mulher, o casamento e a procriação. Afirmando-se também como filho de uma mulher, Cristo condenava as heresias que negariam a sua humanidade, como iam fazer os eutiquianos, que afirmavam ter tido Ele apenas um corpo aparente e não verdadeiro.

Por tudo isso, convinha muito que o Evangelho salientasse que ela era 'a mulher' e que afirmasse ser ela a mãe de Jesus: 'E Mãe de Jesus estava aí'. Por isso também São Paulo afirma? 'Deus enviou seu Filho, nascido de mulher' (Gal. IV,4). Maria, pois, foi a mulher e a Mãe de Jesus.

Cristo afirma que nem Ele nem ela tinham qualquer responsabilidade pela falta de vinho, nas bodas de Caná. Não fora nem por causa de Deus, nem por causa dos justos de Israel que o povo eleito já não tinha nem o vinho da Justiça, nem a Sabedoria, nem a Caridade. Se a Sinagoga estava carente de vinho para as suas núpcias com Deus, isto era por culpa exclusiva dos maus judeus, principalmente de seus príncipes e doutores. Nem Cristo, nem a Virgem tinham qualquer participação na culpa da Sinagoga, da qual não compartilhavam nem da culpa e nem da decadência.

Não chegara ainda a hora de Cristo. Esta hora suprema a que Ele se referia chegaria na Páscoa Santa na qual Ele instituiria o sacrifício da Nova Aliança, na Santa Ceia do Cenáculo e, pouco depois, no Calvário. Agora, em Caná, foi o pedido da Virgem que fez Ele antecipar a hora dos milagres, pois este é o poder da oração: como que 'forçar' a vontade de Deus, tal qual Jacó forçou o anjo a abençoá-lo. O que lhe valeu o misterioso nome de Israel, isto é, 'forte contra Deus' (Gen. XXXII,28). Não que a oração mude a vontade de Deus, mas Deus condiciona a doação de suas graças e de seus planos providenciais à súplica dos homens.

Maior do que a força de Jacó arrancando a benção do anjo foi a força da petição de Maria arrancando de Cristo, seu divino Filho, a antecipação de sua hora. Por isso, mais do que Jacó ela merece o nome de Israel, 'forte contra Deus'. Daí São Luís de Montfort, o grande Doutor mariano denominá-la de 'omnipotência suplicante'. E mais do que a ninguém vale para ela o que Cristo disse dos violentos: 'O Reino de Deus sofre violência, e todo dia os violentos o arrebatam' (Mt. XI, 12).

Neste caso do milagre de Caná, Ele quis demonstrar que a transformação da água em vinho – primeiro de seus milagres públicos na ordem natural – se deu por causa das súplicas de sua Mãe a Virgem Maria.

Que importância tinha, em concreto, o ter acabado o vinho numa festa em Caná da Galiléia naqueles longínquos tempos ? Que era Caná, mísera aldeia de uma mísera província desprezada até pelos judeus ? Que era a Judéia, então ? E que eram aqueles pobres noivos de que não restou nem o nome, apesar do milagre enorme que por eles foi feito ?

O fato, de si, minúsculo da falta de vinho numa festa de casamento não tem qualquer importância aos olhos dos homens. Mesmo para os convivas, que importância maior teria o fato de terem que ir embora um pouco mais cedo porque o vinho acabara ? Que conseqüências haveria para o mundo e para a História, caso a festa de núpcias de um desconhecido e irrelevante casal de noivos, na irrelevante e desconhecida Caná se encerrasse antes da hora por falta de vinho ?

Nem a Galiléia, nem Caná, nem os noivos, nem a falta de vinho tinham de si qualquer importância. Mas. A delicada caridade e o afeto maternal de Maria se comoveram diante do embaraço daqueles pobres noivos que nada lhe pediram, mas a quem ela se apressou a socorrer, implorando a Cristo um milagre, ainda que fosse antecipando a hora providencialmente estabelecida.

E São Tomás, nos Comentários que dele estamos citando, nota que Nossa Senhora não esperou que necessidade dos noivos chegasse ao extremo. Quando viu que o vinho estava acabando, logo pediu a Cristo que desse remédio à situação ( São Tomás, op. Cit. Cap. II , Lição I, nº 345, Vol. I p. 330).

Foi essa caridade preventiva da Virgem Maria que levou Dante – sublime poeta a tantos títulos censurável – a escrever estes esplêndidos versos a respeito da bondade de Nossa Senhora:

'Donna, sei tanto grande e tanto vali
che qual vuol grazia ed a te non ricorre
sua disianza vuol volar sanz’ ali.
La tua benignità non pur socorre
a chi domanda, ma molte fiate
liberalmente al dimandar precorre.
In te, misericordia, in te pietate,
in te magnificenza, in te s’adunna
quantunque in creatura è di bontate'

(Dante Allighieri, Divina Comedia, Paradiso, XXXIII,13-21).

[Mulher, és tão grande e tanto vales
que, quem graça e a ti não recorre,
seu desejo é o de voar sem ter asas.
A tua benignidade não só socorre
a quem pede, mas muitas vezes,
generosamente, ao pedir, precede.
Em ti, misericórdia, em ti, piedade,
em ti, magnificência, em ti se reúne
tudo quanto na criatura há de bondade!']

Magníficos e verazes versos de um poeta que nem sempre foi veraz, porque mantinha uma 'dottrina nascosta sotto il velame delli versi strani ' (Dante, Divina Comedia, Inferno, IX, 63).

Em seu Comentário ao Evangelho de São João , São Tomás nos diz que, a Virgem Maria, pedindo o milagre a Cristo em Caná, 'representa nisto a Sinagoga, que é a mãe de Cristo: com efeito, os judeus têm o hábito de pedir milagres, como o diz São Paulo: 'Os judeus pedem sinais' (I Cor. I, 22).

Se Nossa Senhora pediu o milagre por caridade material, ela imediatamente dá aos servos do noivo um conselho que serve para todos nós: 'Fazei tudo o que Ele vos disser'. Por este motivo também, não é então sem razão que a Igreja a chama de Mãe do Bom Conselho. Não só ela foi Mãe do Conselho de Deus Altíssimo, como é mãe que continuamente só nos comunica bons conselhos e aspirações.

Mostra então o Evangelho que Nossa Senhora pediu o milagre. Cristo o realizou, Os Apóstolos o testemunharam.

Prossegue o relato do evangelista dizendo que havia lá seis talhas de pedra preparadas para as purificações dos judeus, cada uma delas com duas ou três medidas, e que Cristo ordenou que as enchessem de água. É essa água que Jesus vai transformar em vinho.

São Tomás indaga por que Cristo quis usar água para fazer o milagre. Não poderia Ele ter feito o vinho do nada ? Claro que sim.

Portanto, se Ele usou a água foi por alguma sábia razão.

São Tomás excogita as seguintes razões para isso:

1ª Para demonstrar que a matéria é boa, ao contrário do que ensinariam os hereges gnósticos de todos os tempos ( maniqueus, cátaros e budistas);

2ª Para nos mostrar que, assim como Ele tinha poder de transformar a água em vinho, tinha também poder de transubstanciar o pão e o vinho em seu corpo, sangue, alma e divindade;

3ª Para nos fazer entender que Ele não vinha trazer uma doutrina nova, mas que o seu ensinamento era apenas o aperfeiçoamento do que Deus ensinara no Antigo Testamento. ( Cfr. São Tomás, Comentário..., Cap. II , Lição I, nº 358, ed. Cit. Vol. I, p.339).

Que símbolos contém a água ?

É certo que a água, de um lado simboliza a humildade, pois assim como a água escorre procurando sempre o lugar mais baixo, assim também quem é humilde busca sempre as posições mais baixas e nunca as mais altas. Se a água sobe aos céus é apenas em forma de vapor aquecida pelo Sol. Pois assim também, quem é humilde e busca os lugares mais baixos, é exaltado pelo ardor do amor de Deus que eleva os humildes acima das nuvens.

Por outro lado a água se adapta a todos os recipientes, simbolizando por isso as pessoas cordatas e mansas que não procuram impor-se mas que aceitam tudo o que lhes acontece como vontade de Deus.

E nossa irmã água – como poeticamente a chama São Francisco – 'è umile ed utile, et pretiosa et casta' (S. Francisco, Cântico das criaturas).

Todo símbolo, porém, é ambíguo. E São Tomás nos aponta outro símbolos postos por Deus na água. O Aquinate nos lembra que a água é um elemento frio e instável que, de si, corre sempre para os lugares mais baixos, até chegar no abismo do mar amargo. Ela representa, assim, os pecadores que friamente caem de pecado em pecado, de abismo em abismo, até se precipitarem, afinal, no amargo abismo do inferno.

As águas das talhas de Caná representam ainda os sacrifícios dos judeus no Antigo Testamento, que eram apenas imagens do Sacrifício do Novo Testamento. Os sacrifícios judaicos, eram ofertados por um povo que deixara a reta via, que matara os profetas e ia matar cristo o filho herdeiro da vinha. Essas águas representam então os pecados dos judeus que encheram até a borda os seus corações de pedra. Pois está dito que os servos dos noivos encheram as hidras até as bordas.

Por outro lado, foi Cristo que mandou encher as talhas. Portanto, elas estavam vazias. E essas hidras eram usadas, como dissemos, para as purificações judaicas. Elas estavam vazias, porque os judeus tinham seus corações de pedra vazios de qualquer arrependimento. Eram hidras vazias, porque as águas da purificação judaica eram mero símbolo das futuras águas do batismo que, elas sim, trazem a verdadeira e inteira purificação da culpa original.

Cristo mandou, então, encher as talhas de água, isto é, que os pecadores -- de coração duro como pedra – enchessem esses corações , até a borda, com as lágrimas do arrependimento. E os servos seguiram o conselho da Virgem Maria e obedeceram a ordem do Verbo encarnado, e, por isso, lhes foi dado beberem o vinho excelente do milagre de nosso Senhor Jesus Cristo.

Eles eram servos, porque eram judeus, filhos da escrava, filhos da Sinagoga. Mas os aceitam serem purificados nas águas do batismo e nas lágrimas de um arrependimento sincero, estes serão chamados filhos, e eles beberão o sangue do Cordeiro celestial. Eles tomarão o cálice do sangue de Cristo, vinho da Nova Lei, vinho que aquece e que traz a alegria e o fervor do perdão, da graça e o ardor do amor de Deus, e o zelo pela virtude.

Eram seis as hidras de pedra em Caná. Seis, porque, ao criar o mundo, Deus usou seis dias e ao cabo desses seis dias, estabeleceu sua primeira aliança com os homens, e instituiu o primeiro casamento, ordenado a Adão e Eva que se multiplicassem.

Eram seis as hidras de pedra em Caná, e, comenta Hugo de São Victor que eram seis para representar também as seis idades do mundo, desde a origem até Cristo. E o grande São Tomás repete essa explicação do abade de São Victor, relacionando as seis talhas com as seis idades da história do homem.

Essa divisão da História em seis idades, desde Adão até o fim dos tempos -- e que daremos a seguir – teve uma aplicação errônea nos escritos de Joaquim de Fiore, pai de tantas heresias milenaristas e escatológicas. Feitas, porém, as prudentes e necessárias ressalvas, de si, ela não é condenável, e, por isso, as citaremos na ordem e correspondência das idades do homem, conforme a exposição de Hugo de São Victor.

IDADES DO MUNDO

IDADES DO HOMEM

  
1ª De Adão até Noé1ª Idade pueril do homem
2ª De Noé até Abraão2ª Infância
3ª De Abraão a Daví3ª Adolescência
4ª De Daví ao cativeiro de Babilônia4ª Juventude
5ª Do cativeiro de Babilônia até Cristo5ª Maturidade
6ª De Cristo até o fim do mundo6ª Velhice
7ª A vida eterna7ª O Reino dos Céus.


Foi no sexto dia que Deus criou Adão e Eva, revelou-se a eles, e ordenou que se multiplicassem, dando-lhes a lei que proibia comer o fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal. Assim também, na sexta idade, o Filho de Deus se tornou homem, instituiu o matrimônio como sacramento, fundou a Igreja, dando-lhe a lei evangélica. Na sexta idade se deu a Redenção.

Convém salientar que, segundo esse esquema das idades da História – ao contrário do esquema joaquimita que era milenarista – a sétima idade, a do repouso, está além deste mundo, além da História. O Abade De San Giovanni in Fiore com todos os eus seguidores quiliásticos, pelo contrário, esperam um reino de Deus, religiosos político e social, ainda neste mundo . Hugo de São Victor afirma que a sexta idade vai até o fim do mundo, e que, portanto, não haverá um Reino de Deus neste mundo, porque Cristo afirmou: 'Meu Reino não é deste mundo' (Jo. XVIII, 36).

Conforme diz Hugo de São Victor, as seis hidras de pedra das bodas de Caná representam ainda os cinco sentidos corporais e o senso interior que unifica as informações dos cinco sentidos. As seis hidras da purificação continham as águas que purificavam os pecados de nossos seis sentidos.

Enfim, convém fazer referência ao fato de que as hidras eram seis porque, além do sacramento do matrimônio instituído então por Cristo, em Caná, Ele ia nos dar mais seis sacramentos, que conteriam o vinho da graça, capaz de nos dar o vigor, o calor e a doçura, para enfrentarmos as dificuldades morais nas várias situações e dificuldades de nossa vida espiritual. É possível interpretar também as seis hidras como seis sacramentos, sendo o sétimo, a Eucaristia, aquele que nos dá o próprio Cristo com seu corpo, sangue, alma e divindade, representado pela próprio Jesus Cristo, presente em Caná.

Está dito ainda no Evangelho que cada hidra continha duas ou três medidas, porque cada sacramento nos dá uma graça sacramental, própria de cada sacramento, além do aumento da vida da graça em nós, o que perfaz duas medidas. Mas, três sacramentos – Batismo, Crisma e Ordem – além da graça sacramental própria e do aumento da vida da graça santificaste, imprimem caráter em nossas almas, o que perfaz a terceira medida.

Hugo de São Victor ensina que as hidras tinham duas ou três medidas, porque elas estavam destinadas a conter as águas da purificação. Ora, nas tentações que nos podem levar a pecado, pode-se distinguir:

1º -- A deleitação, na sugestão pecaminosa;

2º -- O pleno conhecimento e pleno consentimento da vontade;

3º -- A própria obra pecaminosa.

Ora, conforme falte gravidade da matéria de pecado, ou pleno conhecimento e pleno consentimento, o pecado será venial e não mortal. Por isso, o arrependimento deve também conter duas ou três medidas.

E as seis hidras eram de pedra, porque nossos sentidos são empedernidos por nossas culpas, e nós só as lavamos quando as enchemos com as lágrimas de nosso arrependimento e de compunção. E as águas são convertidas em vinho, porque o pranto da culpa é convertido pelo perdão na alegria trazida pelo vinho da graça.

Hidras de pedra – porque a Igreja é de Pedro e contém firmemente as graças do Vinho Eucarístico.

São Tomás de Aquino faz outro comentário ainda, e muito curioso, sobre o significado das seis urnas dos judeus, que Cristo ordenou que fossem cheias de água. Diz ele que 'no sentido místico [ é preciso compreender que] nas núpcias espirituais, a Mãe de Jesus, a Virgem bem-aventurada, está presente na qualidade de conselheira das núpcias, porque é por sua intercessão que somos unidos a Cristo pela graça' (Op. Cit. Cap. II , Lição I, , nº 343; ed. Cit. Vol I, p.328).

De outro lado, a pedra das hidras representaria os judeus enquanto as águas seriam os gentios. O vazio das hidras e seu preenchimento pela águas significaria a substituição dos judeus pelos gentios , no Novo Testamento.

E por que as águas, elemento líquido, seriam os gentios, e a pedra - ou a terra, o elemento sólido, os judeus ?

Várias passagens da Escritura indicam isto. Por exemplo, o nome de Moisés, significa 'Salvo das águas', não só porque ele foi salvo das águas do rio Nilo, como também porque ele foi salvo do egípcios que eram gentios.

Também, durante o êxodo, ao chegarem a Mara, os judeus só encontraram águas amargas, isto é, salobras e impróprias para saciarem a sede. Porém, quando Moisés lançou nelas o seu bastão de madeira, elas ficaram doces e potáveis. Por que isto ? Porque as águas – os gentios – que não eram 'potáveis' para Deus por causa de sua idolatria, tornaram-se doces e potáveis, quando nelas foi lançado o madeiro da cruz de Cristo. Por isso também, Cristo caminhou sobre as águas e ordenou a Pedro que fizesse o mesmo. E Pedro duvidou e começou a afundar, para representar que, em certo momento, ele duvidou da legitimidade do apostolado com os gentios e 'judaizou' na questão das carnes proibidas, e , por isso, foi repreendido por São Paulo.

O arquitriclínio experimentou o vinho miraculoso de Cristo e o julgou excelente. Não conhecendo ainda a sua origem miraculosa, falou de sua estranheza ao noivo, dizendo-lhe que, normalmente, os homens servem primeiro o vinho melhor, e depois que os convidados já estão satisfeitos, servem então o pior.

Evidentemente, servir o vinho pior no final da festa não pode ser a norma de Deus., porque envolve falta de generosidade e uma certa astúcia. A cias de Deus não são as vias dos homens. Deus nos dá primeiramente o vinho pior – as agruras e as cruzes da vida - para, depois, nos dar o vinho generoso e perfeito da festa celestial, por toda a eternidade. Antes, temos que tomar o caminho estreito e pedregoso, para, depois, recebermos nossa recompensa imensamente grande, que será o próprio Cristo. Antes, Ele deu aos judeus o vinho do Antigo Testamento, que era apenas um prenúncio do 'vinho' eucarístico, que é o próprio sangue de Cristo.

Desse 'vinho' melhor, o arquitriclínio não compreendeu a origem, pois não vira o milagre. Assim também, do Messias, os judeus ignoravam a sua origem, e, por isso, lhe perguntavam : 'De onde vens Tu ? ' ( ).

E Cristo lhes dizia: 'Vós não sabeis de onde Eu venho' ( Jo. VIII,14).

Desse modo os judeus não conheciam a origem divina do Verbo, por sua geração eterna no seio de Deus Pai, nem sua encarnação no seio virginal de Maria Santíssima. E, quando Ele a exprimiu, eles recusaram aceitá-la, e tomaram pedras para matá-Lo ( Cfr. ). Por isso os judeus, desconhecendo a origem divina do Messias não receberam, porque não quiseram, o vinho de sua graça.

Também os noivos de Caná não sabiam explicar ao arquitriclínio a origem do vinho superior, e porque ele fora servido só no final da festa.

Estes noivos representam a Sinagoga, que desconheceu a Cristo e o crucificou, porque inebriada pelo vinho inferior, desejou com zelo apenas o reino neste mundo, e preferiu permanecer no exílio da 'Galiléia' , que significa, como vimos, transmigração ou exílio acabado. A Sinagoga amou apenas a letra da lei, e não espírito. E assim como no vinho inferior só se busca o inebriamento do álcool, sem ter nenhuma doçura superior, assim também, a letra da lei mata, impedindo que o espírito das Escrituras seja conhecido e vivifique e inebrie a alma pela doçura da sua Sabedoria.

Pois Cristo veio ao mundo para que tivéssemos vida e saúde em abundância. Para isto, Ele veio fundar a Igreja, geradora dos filhos de Deus com Cristo, para a vida eterna. Igreja fundada na pedra, e na qual Cristo faz jorrar o vinho excelente de suas graças, enchendo até a borda os corações dos fiéis.

Finalmente, convém lembrar que as hidras eram de pedra e estavam vazias, porque o homem é feito de barro, e que a pedra é 'barro', isto é, mineral endurecido. Era Adão, o homem pecador que estava petrificado pelo pecado original, e vazio de graça e vida espiritual. Como já vimos, eram seis as hidras vazias, porque seis eram as idades do mundo, que haviam passado até Cristo vir para realizar suas núpcias com a sua Igreja.

A hidra vazia é, então, o homem morto pelo pecado ao qual Cristo devolveu a graça. A hidra vazia é também o homem santo e que morreu materialmente, para quem, no fim do mundo, Cristo ressuscitará com um corpo glorioso e tendo um nova vida, superior a que perdera.

A hidra vazia é, enfim, Cristo morto para pagar os nossos pecados, e que pela ressurreição, venceu a morte, e tornou a encher nossas almas de vida. 'Et ressurrexit tertia die'. E, por isso, tudo isto que se fez em Caná aconteceu 'in die tertia'

'Tal foi o primeiro dos milagres de Cristo ', diz São João, a fim de condenar os falsos milagre atribuídos a Cristo, quando ainda menino, conforme contam mentirosamente os Evangelhos Apócrifos ( Cfr. São Tomás, op. Cit Cap. II Lição I, nº 364; ed. Cit. Vol I, p.343).

O milagre de Caná foi o início dos milagres de Cristo que culminaram com a sua gloriosa Ressurreição. Depois disto, Ele se manifestou gloriosamente a seus Apóstolos, que creram nEle. Por isso está escrito: 'Por este modo deu Jesus princípio aos seus milagres em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nEle'.

Depois da Ressurreição e da Ascensão aos céus, os Apóstolos se espalharam pelo mundo, pregando a Cristo crucificado que ressuscitou dos mortos. A Igreja Católica – cuja cabeça é Cristo – iniciou sua trajetória de missões, martírios, de polêmicas e de cruzadas, levando o nome de Cristo Jesus até os confins da terra, sempre assistida pela Virgem Maria e pelas preces da Igreja triunfante, no céu.

Por isso, a narração do milagre de Caná conclui com as seguintes palavras:

'Depois disto, foi para Cafarnaum, Ele e sua Mãe, seus irmãos e seus discípulos – toda a Igreja – mas não demoraram lá muitos dias' ( Jo II,12).

Comparados com a eternidade, poucos são os dias da História entre a Ressurreição e o Juízo, entre 'Tertia die' 'et novissima die'

Amen . Veni, Domine Jesu !

Fonte>: http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/bodas/

 

Ano A - Mateus 9,9-13

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